São Paulo, terça, 30 de setembro de 1997.



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Juízes e lixeiros


Exigiu-se exclusividade. Em contrapartida, a sociedade deve remunerá-lo à altura da situação que lhe impôs
SAULO RAMOS

Na discussão dos sistemas de aposentadoria, atualmente em votação no Congresso, tem muita gente fazendo trapaça grossa. E desonesta. Comparar a prerrogativa do juiz com o privilégio do parlamentar, que se aposenta com apenas quatro anos de mandato, é mais do que demagogia: é um insulto.
O parlamentar pode exercer licitamente qualquer outra atividade rendosa e, com sucesso, amealhar economias para seu pé-de-meia. O juiz não pode. Ao médico, que está ganhando miseravelmente no exercício da nobre profissão, é, no entanto, assegurada a oportunidade de montar sua clínica, ser dono de hospital, associar-se com outros colegas para suplementar suas rendas.
Todas as demais especializações profissionais, públicas ou privadas, permitem, de uma ou de outra forma, atividades suplementares -que, é claro, dependerão do estado geral da economia para ser ou não compensadoras. Ao juiz nada disso é permitido, ainda que as finanças nacionais estejam ótimas.
Evidentemente dramática no país é a remuneração de professores nas escolas públicas ou privadas, situação lamentável para um povo que, acima de tudo, precisa de educação. Professor necessita estudar para ensinar. E ganha miséria. Nem livro pode comprar.
Pois ao magistrado somente se permite, além de suas funções, o exercício de um cargo de professor, precisamente a atividade cujos vencimentos constituem, ironicamente, verdadeira espoliação do trabalho intelectual. E tudo isso é vedação, ordenamento, disciplina constitucional. Problema sério.
Ora, o juiz de direito é agente da lei. De sua caneta, ou do teclado de seu computador, o cidadão recebe concretamente as garantias que, na Constituição e nas normas, são apenas declamatórias. Queiram ou não, suas funções têm direta e profunda importância para a vida de cada brasileiro. Por meio de uma sentença, o magistrado dispõe, com absoluta independência, sobre a liberdade das pessoas, o patrimônio dos cidadãos, a guarda de filhos, todos os direitos que a cada um de nós são assegurados pelo sistema jurídico, que de nada valeria sem juiz que o aplicasse.
É evidente que esse agente público precisa, no mínimo, de tranquilidade para proferir julgamentos. E mais: precisa de cultura, de ciência jurídica, que somente se adquire e se atualiza mediante estudos permanentes e caros, revistas especializadas, computadores, congressos, bibliotecas e vivência plena dos fatos sociais.
E o que fez nosso sistema para o juiz, considerando tais funções exclusivas? Proibiu-o de tudo. Não pode fazer mais nada, não pode receber de outras fontes, não pode comerciar, não pode ser sócio de coisa alguma, não pode, não pode, não pode. Exigiu-se dele exclusividade absoluta. Logo, em contrapartida, a sociedade deve remunerá-lo à altura da situação que lhe impôs. Mas, mesmo assim, não remunera.
Os magistrados pleiteiam o mínimo: que não se alterem as regras de suas aposentadorias. Ou menos: que a lei geral de previdência seja a eles aplicada no que couber, ressalvando, com esse pouco, a esperança de o legislador, no futuro, não despojá-los daquele mínimo. Nem sei se isso irá assegurar-lhes algo, com tantos discursos classificando a ressalva como "privilégio".
Os críticos não apontam, porém, qual o privilégio deferido à magistratura. Qual? Digam um só! Essa história de falar em "ofensa ao senso de justiça e à ética republicana" não passa de frase empolada, sem conteúdo concreto, sem verdade definida, porque não aponta o fato nem a vantagem que em privilégio se constituiriam. É discurso de candidato a vereador em Tatuí -assim mesmo, com pouca chance de fazer sucesso, por demasiadamente vazio.
Apoiando esse pernosticismo, um jornal de São Paulo, em editorial na última sexta, sustentou que a tese, a garantia de aposentadoria para o magistrado como condição de julgamentos isentos, "valeria para o médico, que precisa de tranquilidade para operar, o engenheiro, para projetar e calcular estruturas, para o padre, para confessar e confortar, para o escrevente, para não errar ortografia e sintaxe, ou para o lixeiro para não deixar restos para trás".
Eu acrescentaria mais um "para", que seria "para um jornalista não escrever tanta bobagem e tanto 'para"'. O cirurgião pode cobrar o que quiser, fora do SUS; o engenheiro, a mesma coisa -e nem SUS tem a limitar seus ganhos; o padre, por definição, desfruta de paz de espírito; o escrevente que errar na sintaxe é substituído; e, finalmente, o lixeiro, por mais digna que seja a profissão, como todas as demais, não precisa de ciência alguma para varrer o lixo. Nem de biblioteca, nem de fatos sociais além do seu próprio.
Na defesa de seus direitos, a sociedade sabe que precisa de magistrados cultos e tranquilos. Sabe até por intuição. Na Inglaterra, o juiz ganha bem e, quando acha insuficientes seus vencimentos segundo os padrões do local onde exerça a função, ou em face do aumento de seus encargos familiares, tem direito de requerer suplementação individual. E recebe.
Nos EUA, os vencimentos dos juízes, desde a independência, foram considerados fundamento de segurança para a população. Quando se discutia essa matéria, Alexander Hamilton, em sua obra monumental "O Federalista", advertiu que "o controle sobre os meios de subsistência de um homem equivale ao controle sobre sua vontade".
É preciso, pois, meditar, sob o ponto de vista social e no interesse do povo, sobre a diferença que existe entre a vontade do juiz e a vontade do lixeiro. Ou se o direito dos cidadãos pode ser comparado ao lixo deixado para trás.

José Saulo Pereira Ramos, 68, é advogado em São Paulo. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).



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