|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
VINICIUS MOTA
O último churrasco
O FIO da lâmina rasga o tecido num chofre. A carne aos
pedaços. O sal em cristais
miúdos lançado na superfície vermelha, esfoliada à mão com delicadeza. O Mestre pensa em Tiradentes enquanto observa o hábil Churrasqueiro a preparar o repasto da
noite -que será o último, todos já
sabem. "Esquartejado em praça
pública, a carne salgada, exposto às
peças nos quatro cantos deste
país...". A voz do Churrasqueiro
corta-lhe o devaneio num repente,
qual ducha fria: "Tirei esta aqui
sangrando, como o senhor aprecia". O sangue goteja da fatia.
"Vampiros, sanguessugas! Querem
o meu sangue estes aloprados", o
Mestre volta ao transe.
O Segurança, barba por fazer, se
aproxima do piloto da grelha. Flexiona os joelhos para falar ao ouvido do outro: "A águia, quer dizer, o
carcará pousou", sibila. Um leve
sorriso se abre na face do homem
que escuta. "Faremos barba e cabelo", exulta em pensamento, enquanto raspa entusiasmado a faca
no afiador. Alegria parecida, só
quando serviu ao Comandante.
Com um gesto, chama o gigante de
volta. "Quanto tempo a picanha ficou no fogo?" O Segurança espreita
ao redor e mostra dois dedos. "Um
pouco em madeira verde, importada, e o grosso foi carvão nacional
mesmo". O Churrasqueiro não
perde a chance de gozar o Príncipe:
"Ele não falou que faltava um Lacerda? Aí está". Contém o riso, para
não perturbar o Mestre. O Segurança alonga os lábios protocolarmente; não entendeu a piada.
A lingüiça sua, a brasa estala. O
cheiro de carne chamuscada invade as narinas do Mestre, que dormita. Sonha com os amigos que já
não podem estar ali. O Capitão, o
Tesoureiro, o Guerrilheiro, o Pacificador dos Mercados, o Jipeiro.
"Por que me abandonastes? Não
vedes que está próximo o momento da minha Ascensão? Que sou e
serei o Eleito?". A fantasia muda o
curso. O Mestre faz sua entrada
triunfal em Jerusalém -Nova Jerusalém. Apeia do burrico para ser
carregado, de novo, nos braços do
povo. É quando sente o cutucão.
O Porta-Voz em desespero tenta
despertar o chefe. Ninguém sabe
como lhe dar a notícia. O celular do
Criminalista pifou, mas ele já está a
caminho. Os jornais, a TV, a internet, o estrago. Já pediram explicações ao Bigode; convocaram o Amigo dos Aposentados. Alguém tem
que falar, pois o Mestre acordou invocado, como naquela manhã em
que ligou para o Texano. Silêncio.
"Vieram comer a costela do
Churrasqueiro?", pergunta o Mestre. "Não é bem a costela...", alguém
pensa, mas, prudente, não tem coragem de abrir a boca. "Boca fechada agora, que vou assistir o jogo do
timão", pontifica o chefe. Noventa
minutos de paz graças ao escrete
socrático -"Só sei que nada sei".
VINICIUS MOTA é editor de Opinião.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Luiz Fernando Vianna: O horror à diferença Próximo Texto: Frases
Índice
|