São Paulo, sábado, 30 de setembro de 2006

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VINICIUS MOTA

O último churrasco

O FIO da lâmina rasga o tecido num chofre. A carne aos pedaços. O sal em cristais miúdos lançado na superfície vermelha, esfoliada à mão com delicadeza. O Mestre pensa em Tiradentes enquanto observa o hábil Churrasqueiro a preparar o repasto da noite -que será o último, todos já sabem. "Esquartejado em praça pública, a carne salgada, exposto às peças nos quatro cantos deste país...". A voz do Churrasqueiro corta-lhe o devaneio num repente, qual ducha fria: "Tirei esta aqui sangrando, como o senhor aprecia". O sangue goteja da fatia.
"Vampiros, sanguessugas! Querem o meu sangue estes aloprados", o Mestre volta ao transe. O Segurança, barba por fazer, se aproxima do piloto da grelha. Flexiona os joelhos para falar ao ouvido do outro: "A águia, quer dizer, o carcará pousou", sibila. Um leve sorriso se abre na face do homem que escuta. "Faremos barba e cabelo", exulta em pensamento, enquanto raspa entusiasmado a faca no afiador. Alegria parecida, só quando serviu ao Comandante.
Com um gesto, chama o gigante de volta. "Quanto tempo a picanha ficou no fogo?" O Segurança espreita ao redor e mostra dois dedos. "Um pouco em madeira verde, importada, e o grosso foi carvão nacional mesmo". O Churrasqueiro não perde a chance de gozar o Príncipe: "Ele não falou que faltava um Lacerda? Aí está". Contém o riso, para não perturbar o Mestre. O Segurança alonga os lábios protocolarmente; não entendeu a piada.
A lingüiça sua, a brasa estala. O cheiro de carne chamuscada invade as narinas do Mestre, que dormita. Sonha com os amigos que já não podem estar ali. O Capitão, o Tesoureiro, o Guerrilheiro, o Pacificador dos Mercados, o Jipeiro. "Por que me abandonastes? Não vedes que está próximo o momento da minha Ascensão? Que sou e serei o Eleito?". A fantasia muda o curso. O Mestre faz sua entrada triunfal em Jerusalém -Nova Jerusalém. Apeia do burrico para ser carregado, de novo, nos braços do povo. É quando sente o cutucão.
O Porta-Voz em desespero tenta despertar o chefe. Ninguém sabe como lhe dar a notícia. O celular do Criminalista pifou, mas ele já está a caminho. Os jornais, a TV, a internet, o estrago. Já pediram explicações ao Bigode; convocaram o Amigo dos Aposentados. Alguém tem que falar, pois o Mestre acordou invocado, como naquela manhã em que ligou para o Texano. Silêncio.
"Vieram comer a costela do Churrasqueiro?", pergunta o Mestre. "Não é bem a costela...", alguém pensa, mas, prudente, não tem coragem de abrir a boca. "Boca fechada agora, que vou assistir o jogo do timão", pontifica o chefe. Noventa minutos de paz graças ao escrete socrático -"Só sei que nada sei".


VINICIUS MOTA é editor de Opinião.

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