São Paulo, quarta-feira, 30 de setembro de 2009

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RUY CASTRO

A morte ideal

RIO DE JANEIRO - Quem já passou de certa idade e saltou algumas fogueiras começa a pensar na maneira ideal de morrer. E o resultado é invariável: de uma vez, rapidinho, sem muitas preliminares. Mas, exceto os suicidas, quem pode escolher como morrer?
Na semana passada, perdemos o dr. Henrique Gandelman. Tinha 80 anos e era advogado. Na juventude estudou violino, viola, composição e regência, e apaixonou-se pela obra de Villa-Lobos. Formou-se em direito e abriu um pioneiro escritório de administração de direitos autorais. Vários escritores, inclusive eu, estavam aos seus cuidados.
Dr. Henrique era como o chamávamos. O tratamento não parecia compatível com o homem alegre e popular que discutia futebol, Beethoven e literatura no Clipper, decano dos botequins do Leblon. Mas ele era um doutor, uma autoridade nas questões sobre quem é dono do quê na obra de arte, e autor de diversos livros a respeito.
Foi dr. Henrique quem dirimiu a caótica situação da obra de Villa-Lobos no exterior. Levou anos correndo EUA, Itália e França, mas conseguiu com que os direitos sobre Villa, perdidos, dispersos ou em mãos de terceiros, convergissem para quem de direito: o espólio do maestro. Foi um trabalho de amor, poucos amavam tanto Villa-Lobos.
Na última quinta, dr. Henrique ia dar uma palestra sobre o artista no Museu Villa-Lobos. E seria também homenageado por seu trabalho de organização jurídica dos contratos da obra do compositor. No camarim, o sistema de som tocava a "Floresta Amazônica". De mãos dadas com sua mulher, Salomea, Dr. Henrique comentou: "Fico sempre arrepiado de ouvir isto. O Villa é mesmo o maior".
Soltou um suspiro grave. A cor lhe fugiu -era o aneurisma, fulminante e fatal. Morreu ali mesmo, no ato. Como se tivesse escolhido morrer ao som de Villa-Lobos.


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