São Paulo, sábado, 31 de janeiro de 2004

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IGOR GIELOW

Um Sudão

BRASÍLIA - Um Sudão é o que nós vemos nas fazendas do interior mineiro, onde o lulista de carteirinha (até 2010, ao menos) Aécio Neves diz que não há trabalho escravo. Quem sabe, vá lá, "condições degradantes". Fazendo justiça à nação africana, lá as condições terríveis de vida são resultantes de uma guerra civil endêmica entre o norte árabe-islâmico e o sul negro-cristão-animista. Mas, na ponta, o resultado é quase o mesmo. Gente miserável, soluções a bala.
Um PIB do Sudão também é o que o governo pagou de juros no ano passado: R$ 145,2 bilhões, pouco mais do que o maior país africano produziu de riqueza em 2002. Ou ainda um PIB da Guatemala, ou um da Bulgária, ou a soma do que produziram os vizinhos Uruguai e Bolívia. Ou dois PIBs de Cuba, para ficar numa predileção do presidente. Ou 3.247.004.797 DVDs do Zeca Pagodinho, outro símbolo da Era Lula, num site que vende música e cinema brasileiros para gringos -em dólar.
Mas jogos matemáticos, como quase tudo que envolve número, resvalam na cretinice. Não é o caso. Estamos falando de gente que morreu trabalhando. Se amanhã descobrirem que foi um crime comum, hipótese altamente improvável, isso não muda nada para as vítimas. Nem para a situação no campo, onde 42 pessoas morreram em conflitos em 2003.
Enquanto vivia-se a tal bolha do otimismo do começo do ano, nada disso parecia incomodar o sorriso de aeromoça das autoridades. Afinal, o país vai crescer em 2004, o Brasil vai fazer e acontecer. Pode ser. Na verdade, tudo indicava que sim. Tomara, para o bem de todos. Mas, se essa gente anunciasse que El-Rei Dom Sebastião iria voltar em março, era capaz de isso virar verdade a ser martelada por colunistas e colunáveis.
Agora, que a bolha dá sinais de que o ano pode não ser assim aquela maravilha, vêm os vislumbres de um outro Brasil. De um país onde fiscais do Trabalho morrem tentando controlar práticas escravocratas. De um país que paga o PIB sudanês de juros. De um país que não dá certo.


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