São Paulo, quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

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Em defesa da defesa animal

RICARDO TRIPOLI

Quem considera o fim da crueldade com animais uma necessidade ética só pode se ofender com as tentativas de simplificar a discussão

A QUESTÃO da experimentação científica e vivissecção de animais suscita debates acalorados, nos quais torrentes de argumentos são expostos, muitas vezes confundindo mais do que esclarecendo.
É neste turbilhão de informações nem sempre completas e interesses complexos que o Código de Proteção aos Animais do Estado de São Paulo (lei nš 11.977/05) tem sido muitas vezes julgado e criticado, como no artigo "Em defesa da experimentação ética com animais", dos professores da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP Cássio Xavier de Mendonça Júnior, Ângelo João Stopiglia e Maria Lúcia Zaidan Dagli, publicado nesta página no dia 18/12.
É importante destacar que, no nível do discurso, quase não há diferença entre a premissa formulada tanto pela lei -fruto de ampla e longa discussão de vários anos com a sociedade- quanto pelos ilustres acadêmicos.
Entretanto, o argumento enfatizado -seria impossível "substituir ou criar artificialmente a complexidade de um organismo e suas inúmeras inter-relações fisiológicas"- é inconsistente, uma vez que genérico: das centenas de métodos alternativos em uso, a eficiência da quase totalidade já é comprovada e eles são utilizados em larga escala em todo o mundo.
Universidades (a exemplo de Harvard) em diversos países e suas respectivas legislações acompanham a evolução tecnológica e as cobranças sociais, investindo em técnicas alternativas ou substitutivas ao uso do animal em pesquisa, abolindo práticas que utilizam animais vivos no ensino, em testes para cosméticos etc.
O código, fruto desse debate intenso, longo e aberto com a sociedade -em cuja tramitação a "preocupação e mobilização da comunidade científica" mencionada no artigo não se fez notar- estimula a busca de soluções éticas e técnicas.
A atitude obscurantista e estagnante que os doutos defensores da experimentação animal tentam atribuir a todos aqueles que têm a sensibilidade de revoltar-se com as cenas chocantes de experimentações com animais -que olhos leigos dificilmente seriam capazes de distinguir da mais brutal crueldade- parece estar mais presente naqueles que se acomodam com a aplicação de técnicas que, em muitos casos, remontam a séculos.
Outra névoa encobrindo as questões de fundo da defesa da experimentação animal parte da argumentação de que ela pode desenvolver técnicas e testar produtos que salvam vidas e reduzem o sofrimento.
Não se nega isso. Tampouco o código pretende impedir tais avanços ou desmerecer conquistas. O que não é possível é que, em nome desses casos -que, na verdade, são uma pequena parcela dos sacrifícios, vivissecções e experimentos-, se tente justificar um número muito maior de casos em que não há esse objetivo, incluindo aí a experimentação da indústria cosmética, certamente de caráter não essencial e que é responsável por grande número de experimentos cruéis.
É necessário considerar também outro aspecto muito destacado pelos insignes professores: a necessidade da sucessiva prática cirúrgica em animais para que os alunos percorram a chamada "curva de aprendizagem" que lhes dará a maestria necessária.
Existem diversos equipamentos de simulação que podem substituir tais práticas até com vantagem sobre a experimentação com animais vivos. Enquanto o animal não pode manifestar com clareza sua dor e o instrutor não pode verificar com certeza a correção, os simuladores garantem controle preciso das operações, sinalizando desvios milimétricos.
A experimentação desnecessária causa sofrimento não só aos animais mas também a muitos estudantes. Nesse sentido, o projeto prevê também o direito de objeção de consciência, preceito de status constitucional.
Os defensores do código e todas as pessoas que consideram o fim da crueldade com os animais uma necessidade ética -estou certo de ser a imensa maioria da população, até porque o código foi aprovado por seus representantes legítimos e discutido com toda a sociedade- só podem considerar-se ofendidos com essa tentativa de simplificar a discussão, rotular a defesa animal como obscurantista e justificar a acomodação dessa parcela da comunidade científica que se apega a algum conceito medieval de que o homem tem todos os direitos sobre os "seres inferiores".
É fundamental concluir dizendo que o ensino da compaixão é também de importância acadêmica. Hoje, a subjugação dos animais não é admitida. A aspiração ética, que contempla o respeito à vida e a capacidade de sofrimento dos animais, norteia a conduta humana.


RICARDO TRIPOLI, 55, advogado, deputado federal eleito (PSDB-SP), é autor do Código de Proteção aos Animais do Estado de São Paulo (lei nš 11.977/05). Foi presidente da Assembléia Legislativa de São Paulo (1995-96) e secretário estadual do Meio Ambiente (1999-2001).

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