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Entre responsabilidade e retórica
RICARDO ABRAMOVAY
Eis uma nova dimensão da atividade política que derruba as fronteiras
em que tradicionalmente
ela se confinou
A OXFAM internacional, uma
das mais respeitadas e conhecidas ONGs, acaba de publicar
um relatório com dados estarrecedores sobre a produção e o consumo de
medicamentos.
Apenas 15% dos habitantes do globo consomem nada menos que 90%
dos remédios que o setor coloca no
mercado. As indústrias concentram
suas pesquisas em produtos que não
correspondem às enfermidades mais
freqüentes. Dos 163 novos produtos
lançados entre 1999 e 2004, apenas 3
se referiam a doenças prevalecentes
em países pobres. O setor concentra-se excessivamente na busca por proteção dos direitos de propriedade intelectual em detrimento do acesso
dos mais pobres ao que necessitam.
A compensação dessas práticas por
meio da filantropia não resolve o problema e joga as populações carentes e
seus governos em profunda insegurança, pois não sabem nunca se poderão contar com os medicamentos que
lhes faltam.
Que a Oxfam lance um documento
com esse teor é menos surpreendente
que a aparição simultânea de um relatório cuja elaboração contou fortemente com a própria indústria farmacêutica e no qual se expõem novos parâmetros para avaliar o setor.
Trata-se de um "índice de acesso
aos medicamentos", que classifica as
indústrias não segundo sua rentabilidade, mas, antes de tudo, a partir de
seu comportamento social.
O índice põe em questão o modelo
tradicional, em que os grandes laboratórios ganham basicamente pela
proteção dos direitos de acesso à inovação. Esse modelo está em franca
contestação pelas sistemáticas quebras de patente que a Justiça vem impondo em diversos países.
Assim, a afirmação da Oxfam de
que é necessário à indústria encontrar novas formas de fazer negócios,
nas quais a responsabilidade pelo
acesso aos medicamentos faça parte
do foco principal ("core business") da
empresa, é muito mais que um desejo.
O índice (www.atmindex.org) é
elaborado por atores sociais diversos:
indústria, universidade, consultores,
governos, organizações religiosas e a
própria Oxfam. Ele atribui pesos a vários aspectos do comportamento do
setor que jamais se exprimiriam em
seus balanços contábeis.
A maneira como os laboratórios fazem a gestão do acesso aos medicamentos, as conseqüências de suas
pesquisas sobre o combate às chamadas doenças negligenciadas, o caráter
eqüitativo de sua política de preços,
políticas de patentes e de licenciamento são alguns dos itens que entram no índice. Alguns fundos de investimento adotarão o índice como
critério para suas aplicações no setor.
É claro que a criação desse índice
não vai produzir, milagrosamente, a
mudança das condições que provocam a vergonhosa concentração da
produção e do consumo de medicamentos no mundo. Mas ele faz parte
de um conjunto de iniciativas que colocam fortemente em dúvida a idéia
central do artigo "Responsabilidade
socioambiental", de Ruy Altenfelder,
publicado nesta coluna em 11/1.
"Causas são objeto e missão de organizações não-governamentais, políticas públicas são objeto e missão de
governo. Empresas são organizações
voltadas para a produção econômica
e devem ser vistas como tal", diz ele.
O índice de acesso aos medicamentos mistura aquilo que Ruy Altenfelder preconiza que esteja bem separado. A "causa" (acesso dos pobres aos
medicamentos) passa a fazer parte da
maneira como a "produção econômica" será julgada.
O índice de acesso aos medicamentos é apenas um exemplo de uma tendência mais geral e que faz da inserção da economia e das empresas no
mundo social uma das principais fontes de sua própria vitalidade.
É claro que as indústrias farmacêuticas têm interesse na elaboração do
índice, não o fazem por espírito caritativo. O importante, porém, é que esse interesse não resulta da separação
entre economia e política, entre o
mundo das "causas" e o universo asséptico dos negócios. Ele provém, ao
contrário, de sua junção, da permeabilidade das empresas ao que se passa
no mundo social.
A idéia de que a empresa faz -dentro do respeito à lei, claro- o que o
mercado quer e, ali onde o mercado
falha, quem tem que resolver é o governo ou as ONG's está cada vez mais
sendo colocada em dúvida no mundo
contemporâneo. É uma nova dimensão da atividade política que derruba
as fronteiras em que tradicionalmente ela se confinou.
Quanto antes os movimentos sociais e as empresas se derem conta
dessa nova realidade, maiores as
chances de a responsabilidade socioambiental ir além da retórica.
RICARDO ABRAMOVAY, 54, é professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental e pesquisador do CNPq.
www.econ.fea.usp.br/abramovay
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