São Paulo, quarta-feira, 31 de março de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES


Os próximos 100 anos

PLINIO MONTAGNA


A psicanálise hoje é capaz de lidar com fenômenos bem além do horizonte a que o gênio Freud chegou


NO DIA 27 de março, a Associação Psicanalítica Internacional (IPA) celebrou seu centésimo aniversário: foi fundada em 1910 após dois anos de gestação por Freud e discípulos de então.
A IPA tem a missão de agregar os psicanalistas de várias origens, favorecer o progresso clínico e conceitual na área, balizar, orientar e promover a formação psicanalítica por meio das instituições filiadas, expandir e difundir seu alcance. Além disso, deve estimular pesquisas, assegurar seu vigor contínuo e estabelecer ligações com outros campos de ciência e cultura.
A associação conta hoje com mais de 12 mil membros em 33 países. Na China, por exemplo, onde haverá uma celebração importante do centenário, impressiona o interesse e o entusiasmo pela psicanálise. Estima-se um contingente expressivo de membros em alguns anos.
No Brasil, chegou na década de 30, com o grupo que fundaria a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, hoje ligada à Federação Brasileira de Psicanálise, composta pelas instituições filiadas à IPA em nosso país.
Sem a organização desta, a imensa influência da psicanálise na cultura contemporânea jamais poderia ter ocorrido. Nem mesmo o enorme avanço do conhecimento psicanalítico, conceitual e clínico.
Ainda que para alguns a ideia de psicanálise se encerre em Freud, trabalhos de muitos autores subsequentes ao gênio criador contribuíram para a permanente construção de um corpo vivo, para a tessitura de um saber orgânico, dinâmico, em permanente expansão.
As contribuições de Melanie Klein, Wilfred Bion, Jacques Lacan, Donald Winnicott, Heinz Kohut, Donald Meltzer, Otto Kernberg, André Green e tantos outros ampliaram muito as perspectivas e os horizontes da psicanálise. No Brasil, destacaram-se Isaias Melsohn e Fabio Herrmann.
Além deles, centenas de outros menos conhecidos colocaram ou colocam tijolos nesse edifício. A IPA alberga psicanalistas de todas essas influências, convivendo num ambiente plural, de debates múltiplos, democráticos. Sua característica ímpar é a possibilidade de conviver com as diferenças, tolerando-as e, quando possível, fazendo-as trabalhar a favor do objetivo comum, o avanço da psicanálise.
O acervo fecundo de conhecimento e experiência legados possibilita hoje abrangência e profundidade no contato com a realidade psíquica do ser humano não possíveis nos primórdios de nossa ciência.
Em outras palavras, somos capazes hoje de lidar com fenômenos bem além do horizonte a que o gênio Freud chegou. Se ele nos deixou a abertura de quase todos os caminhos, foram precisos novos ângulos, novas óticas para trilhá-los.
Montada em seus ombros, a psicanálise está mais bem equipada para tratar complexidades do humano correspondentes à realidade atual. Temos mais condições para lidar com os sofrimentos contemporâneos, o vazio mental, os distúrbios na esfera do limite mente-corpo, as ambiguidades e tibiezas de fronteiras e limites do si mesmo, as especificidades de ansiedade e depressão etc.
O conhecimento pessoal que uma análise pode propiciar não tem paralelo com nenhuma outra atividade humana. Num mundo que tende a dissociar emoção e razão, a apreensão e apropriação do modo de estar no mundo é fundamentalmente desalienante. O contato real com as próprias experiências emocionais é ímpar.
A psicanálise descortina o virtual de cada um, a serviço de ser, de sua humanidade. Não há dúvida de que psicofármacos, terapias cognitivas e outras têm sua potência. Mas mudança psíquica, de fato, é apanágio da psicanálise, campo único da pesquisa da subjetividade radical, da singularidade de cada um.
A vivência na IPA mostra haver talentos para a psicanálise em latitudes e longitudes diversas, da Amazônia ao Sul, do Canadá à Rússia ou à Austrália. Potenciais a serem desenvolvidos numa formação psicanalítica apropriada, bem cuidada.
É experiência fascinante, em discussões clínicas multinacionais, debruçarmo-nos sobre o que talvez seja plasmado pela cultura e o universalmente humano, captado por Freud.
Sentimos que falamos uma mesma língua psicanalítica essencial, mas com sotaques muito, muito diferentes. Vivemos o vigor da psicanálise, que supera crises, viva, rumo, quem sabe, aos próximos cem anos.


PLINIO MONTAGNA, médico e mestre em psiquiatria pela Faculdade de Medicina da USP, é presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e membro do "board" deliberativo da Associação Psicanalítica Internacional.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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