São Paulo, quarta-feira, 31 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Confissão incompleta

RICARDO SEITENFUS

A insinuação do secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Paul O'Neill, de que os futuros recursos a serem repassados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) à Argentina, ao Brasil e ao Uruguai devem ter a garantia de que sejam "aproveitados, e não apenas saiam do país direto para uma conta na Suíça" exige uma complementação ou um desmentido.
No exercício de suas funções, o secretário O'Neill detém informações sobre práticas financeiras que não estão ao alcance, por exemplo, do leitor ou do autor destas linhas. Nesse sentido, caso ele reúna efetivamente dados que sustentem sua convicção do mau uso dos recursos públicos, sejam eles de origem multilateral ou nacional, é sua obrigação coibir a prática criminosa, identificando os responsáveis, seus procedimentos e tomando todas as medidas cabíveis, inclusive a denúncia pública para pôr um termo a essas práticas.
Caso assim ele não proceda, estará dando razão àqueles que o consideram despreparado para o exercício de tão importante cargo.
A pequena frase de O'Neill já foi pronunciada por muitos. Todavia quando ele a emite adquire formidável impacto, pois se trata de fundamental personagem da economia mundial, obrigado a se expressar com a responsabilidade que somente a cautela permite. Além disso, o momento escolhido é muito delicado, já que a economia desses três países se encontra no olho do furacão, elevando seu risco soberano e provocando uma fuga de capitais que a torna ainda mais frágil.
A percepção de que o auxílio ao desenvolvimento concedido aos países do Terceiro Mundo e a ajuda financeira às economias emergentes representam um poço sem fundo, que não beneficia o destinatário final, mas sim suas elites corrompidas, constitui voz corrente tanto da maioria da opinião pública quanto em certos círculos governamentais ocidentais. O próprio Banco Mundial (Bird), em estudos recentes, detectou que 70% da ajuda ao desenvolvimento não alcança as camadas mais pobres da população.


A unânime reação brasileira é de um nacionalismo bizarro, já que ela resulta de um repúdio ao mensageiro


O repúdio violento e unânime do governo, da oposição e dos formadores de opinião brasileiros à inaceitável intromissão nos assuntos internos -o presidente do Supremo Tribunal Federal considerou a declaração como um atentado à soberania nacional- deve ser matizado. Por um lado, constitui obrigação do FMI zelar pelo bom uso de seus recursos. Ora, os princípios da boa governança, que orientam suas ações, privilegiam, entre outros aspectos, a luta contra a corrupção. Todavia o organismo foi conivente, ao longo de sua trajetória, com governos ditatoriais e corruptos.
Os exemplos de Fujimori, no Peru, e dos numerosos déspotas africanos indicam claramente que o princípio de luta contra a corrupção foi sacrificado no altar dos ajustes estruturais promovidos pelo Fundo.
Por outro lado, a unânime reação brasileira é de um nacionalismo bizarro, já que ela resulta de um repúdio ao mensageiro, e não à mensagem. Muitas denúncias de corrupção alimentam quotidianamente as páginas dos jornais brasileiros, e o próprio presidente Cardoso reconheceu, publicamente, em recente entrevista, a existência de uma "corrupçãozinha" no Estado brasileiro.
Finalmente, caso o secretário O'Neill não tenha se referido à corrupção primária e objetiva, mas aos mecanismos financeiros que permitam que os recursos provenientes do FMI sejam utilizados para remunerar os especuladores -a maioria seus conterrâneos-, aconselho que inicie imediatamente a reforma do sistema econômico internacional.
O domínio absoluto do capital financeiro sobre o produtivo; a ausência de regras que moldem e controlem o mercado de capitais; a multiplicação dos paraísos financeiros, que trazem imensos prejuízos para os países emergentes; e as dificuldades impostas ao controle da lavagem de dinheiro são alguns aspectos da economia-cassino em que se transformou o capitalismo.
Tanto os contribuintes norte-americanos quanto nós, povos da periferia, agradeceríamos se o sr. O'Neill substituísse suas denúncias por ações concretas, fazendo com que, finalmente, as organizações internacionais estivessem à altura dos desafios contemporâneos.


Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 54, doutor em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra, é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e autor, entre outras obras, do "Manual das Organizações Internacionais" (Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre).



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