São Paulo, sábado, 31 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os médicos recém-formados devem passar por um exame de ordem ou similar?

SIM

Protegendo pacientes e médicos

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

A única crítica que fiz ao provão do ministro Paulo Renato foi a da timidez de não avançar para o exame de Estado, que significa a proteção que o governo tem obrigação de dar aos cidadãos, garantindo-lhes profissionais competentes em áreas essenciais -entre as quais a principal é a saúde. Quase todos os países desenvolvidos já o praticam com muita seriedade. Em vários deles a permissão do exercício da medicina é renovada periodicamente e um exame é realizado especificamente para a prática da maioria das especialidades.
Esses cuidados têm também sua razão de ser na constante renovação dos conhecimentos da medicina. Perdemos 30% do nosso saber a cada cinco anos. Às vezes, fico imaginando que, se tivesse um longo sono de 20 anos e acordasse agora, estaria totalmente inabilitado para exercer minha especialidade. Por isso, além das avaliações, deve-se pensar nas estratégias de atualização e educação continuada, papel adicional e relevante das universidades.
No Brasil, qualquer médico que se gradua em qualquer faculdade de medicina pode exercer qualquer especialidade, na cidade que for, pelo tempo que quiser. Felizmente, a lei moral, que cada médico traz dentro de si, a ética ensinada pelos mais velhos, a responsabilidade que a vocação acarreta e as sociedades de especialidades, ao conferirem títulos mediante exames, têm, de alguma forma, substituído precariamente o papel do Estado -que, há muito tempo, de comum acordo com a Associação Médica Brasileira e o Conselho Federal de Medicina, já deveria estar estudando e propondo a implantação gradual e a oficialização desse tipo de avaliação.
A ausência do exame de Estado e a precária exigência dos títulos de especialistas permitem critérios aleatórios e oportunísticos de credenciamento e descredenciamento de médicos pelos planos de saúde, que atendem 40 milhões de brasileiros. Sofrem médicos bons e pacientes incautos.
A Agência Nacional de Saúde não criou tampouco regras para o descredenciamento, que deveria ocorrer somente para os profissionais que não seguissem os protocolos das diferentes sociedades de especialidade, baseados na Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos, ou que infringissem a ética profissional e não se atualizassem.
Não quero parecer reducionista, colocando a ausência do exame de Estado e suas variantes como a única causa do caos instalado na saúde brasileira. Ele tem muitas origens: privatização acrítica desde o início dos anos 90; recentralização do SUS, que existe quase perfeito na Constituição, mas, na prática, é uma caricatura dele mesmo; incompetência da Agência Nacional de Saúde para mediar o setor privado; uso político da saúde; modelo arcaico de organização; falta de valorização dos recursos humanos, que enfrentam enormes dificuldades também em razão da precariedade do ensino médico na maioria das escolas e pela ausência de avaliação dos profissionais, que começa (e termina) com um vestibular -vestibular esse que mede apenas a capacidade dos pais de pagarem cursinho para os filhos, em vez de analisar aptidões, vocação e outras características essenciais ao exercício da profissão. Tudo isso culmina com a ausência do exame de Estado.
Para ser médico e exercer a profissão no Brasil, não é exagero dizer, basta passar no vestibular. Não há reprovação nas escolas e o Estado não cumpre seu papel preventivo de proteger o cidadão contra os profissionais mal preparados.
Esse é um problema que podemos corrigir. Sua solução não depende de recursos, mas de um diálogo franco com as instituições de classe, com os profissionais e com a sociedade, além de coragem para implementar uma política de avaliação justa, porém necessária, para proteger os usuários e os próprios médicos. Médicos que, com certeza, estarão de acordo, mas que precisam de condições de trabalho e de estudo para se atualizar continuamente e fazer o que mais desejam: agir com precisão, modernidade e solidariedade nesse momento quase divino que é o ato médico, o encontro de quem sofre, está inseguro e doente com quem detém os instrumentos do saber para aliviar o sofrimento, a insegurança e, muitas vezes, curar doentes e prevenir doenças.


José Aristodemo Pinotti, 69, deputado federal pelo PFL-SP, é professor titular de ginecologia da USP e presidente do Instituto Metropolitano de Altos Estudos. Foi secretário da Educação (1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São Paulo, secretário da Saúde do município de São Paulo (2000) e reitor da Unicamp (1982-1986).


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