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TENDÊNCIAS/DEBATES
Os médicos recém-formados devem passar por um exame de ordem ou similar?
SIM
Protegendo pacientes e médicos
JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI
A única crítica que fiz ao provão do
ministro Paulo Renato foi a da timidez de não avançar para o exame de
Estado, que significa a proteção que o
governo tem obrigação de dar aos cidadãos, garantindo-lhes profissionais
competentes em áreas essenciais -entre as quais a principal é a saúde. Quase
todos os países desenvolvidos já o praticam com muita seriedade. Em vários
deles a permissão do exercício da medicina é renovada periodicamente e um
exame é realizado especificamente para
a prática da maioria das especialidades.
Esses cuidados têm também sua razão
de ser na constante renovação dos conhecimentos da medicina. Perdemos
30% do nosso saber a cada cinco anos.
Às vezes, fico imaginando que, se tivesse um longo sono de 20 anos e acordasse
agora, estaria totalmente inabilitado para exercer minha especialidade. Por isso, além das avaliações, deve-se pensar
nas estratégias de atualização e educação continuada, papel adicional e relevante das universidades.
No Brasil, qualquer médico que se
gradua em qualquer faculdade de medicina pode exercer qualquer especialidade, na cidade que for, pelo tempo que
quiser. Felizmente, a lei moral, que cada
médico traz dentro de si, a ética ensinada pelos mais velhos, a responsabilidade que a vocação acarreta e as sociedades de especialidades, ao conferirem títulos mediante exames, têm, de alguma
forma, substituído precariamente o papel do Estado -que, há muito tempo,
de comum acordo com a Associação
Médica Brasileira e o Conselho Federal
de Medicina, já deveria estar estudando
e propondo a implantação gradual e a
oficialização desse tipo de avaliação.
A ausência do exame de Estado e a
precária exigência dos títulos de especialistas permitem critérios aleatórios e
oportunísticos de credenciamento e
descredenciamento de médicos pelos
planos de saúde, que atendem 40 milhões de brasileiros. Sofrem médicos
bons e pacientes incautos.
A Agência Nacional de Saúde não
criou tampouco regras para o descredenciamento, que deveria ocorrer somente para os profissionais que não seguissem os protocolos das diferentes
sociedades de especialidade, baseados
na Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos, ou que
infringissem a ética profissional e não se
atualizassem.
Não quero parecer reducionista, colocando a ausência do exame de Estado e
suas variantes como a única causa do
caos instalado na saúde brasileira. Ele
tem muitas origens: privatização acrítica desde o início dos anos 90; recentralização do SUS, que existe quase perfeito
na Constituição, mas, na prática, é uma
caricatura dele mesmo; incompetência
da Agência Nacional de Saúde para mediar o setor privado; uso político da saúde; modelo arcaico de organização; falta
de valorização dos recursos humanos,
que enfrentam enormes dificuldades
também em razão da precariedade do
ensino médico na maioria das escolas e
pela ausência de avaliação dos profissionais, que começa (e termina) com
um vestibular -vestibular esse que mede apenas a capacidade dos pais de pagarem cursinho para os filhos, em vez
de analisar aptidões, vocação e outras
características essenciais ao exercício da
profissão. Tudo isso culmina com a ausência do exame de Estado.
Para ser médico e exercer a profissão
no Brasil, não é exagero dizer, basta passar no vestibular. Não há reprovação
nas escolas e o Estado não cumpre seu
papel preventivo de proteger o cidadão
contra os profissionais mal preparados.
Esse é um problema que podemos
corrigir. Sua solução não depende de recursos, mas de um diálogo franco com
as instituições de classe, com os profissionais e com a sociedade, além de coragem para implementar uma política de
avaliação justa, porém necessária, para
proteger os usuários e os próprios médicos. Médicos que, com certeza, estarão de acordo, mas que precisam de
condições de trabalho e de estudo para
se atualizar continuamente e fazer o que
mais desejam: agir com precisão, modernidade e solidariedade nesse momento quase divino que é o ato médico,
o encontro de quem sofre, está inseguro
e doente com quem detém os instrumentos do saber para aliviar o sofrimento, a insegurança e, muitas vezes,
curar doentes e prevenir doenças.
José Aristodemo Pinotti, 69, deputado federal
pelo PFL-SP, é professor titular de ginecologia
da USP e presidente do Instituto Metropolitano
de Altos Estudos. Foi secretário da Educação
(1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São
Paulo, secretário da Saúde do município de São
Paulo (2000) e reitor da Unicamp (1982-1986).
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