São Paulo, sexta, 31 de julho de 1998

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O futuro, o passado

JOSÉ SARNEY

Conheci, hoje, o milagre do tempo. Amanheci jovem, estudante do Liceu Maranhense. Naquela época, a companhia de eletricidade de São Luís era a americana Ulen Company, o telégrafo, Western Telegraph, os bondes eram também da Ulen; no Rio, a energia era da Light e em tudo havia nomes estrangeiros, inclusive nas telefônicas. Naquele tempo a manteiga era francesa, a latinha tinha um pelicano, sob marca Le Peletier, e era tão nobre que só meu pai, como chefe de família, sentado à cabeceira da mesa, tinha o privilégio de prová-la. Para nós, a meninada, era manteiga de garrafa.
Depois, os investidores recuperaram seu capital inicial, deixaram de investir, ficaram mamando os lucros e os serviços acabaram. O governo teve que intervir. Criou companhias. Ineficientes ou eficientes, colocaram o Brasil na chamada modernidade. Vieram-me os cabelos brancos, e os nomes desse tempo eram Telebrás, Embratel, Telma, Eletrobrás, Petrobrás.
Agora, quando todos dizem que estamos no futuro, tenho a sensação de que volto ao passado. Acordo e, como em minha mocidade, vejo novamente nomes estrangeiros. A Light é Light, a Embratel é MCI, o gigante dos satélites, Ozires agora é Jerry DeMartino, que esmagou a Globopar, o Bradesco e os tupiniquins. A Telesp é Telefónica de España, a Telebrasília é Telecom Itália. Diz o presidente da Anatel que "em breve, em todas as localidades com mais de mil habitantes, quem pedir uma linha telefônica a receberá em um mês". Mas, precavido com a profecia, adverte: "A qualidade dos serviços será mantida", reconhecendo que podem piorar, e sentencia: "Queremos evitar que aconteça o que aconteceu com a Light, que prejudicou o consumidor". Já o ministro das Comunicações proclama que assistimos a uma "grande revolução". O Brasil teve a coragem de entregar de uma só vez ao capital estrangeiro todo o setor de telecomunicação, 27 Estados e não só isso, mas o grande mercado nacional. "É uma decisão de coragem e modernidade." Cá para mim, nenhum país do mundo abriu mão da totalidade do controle de suas empresas. Já ouvi que, no setor bancário, o Brasil pode ir aos EUA e comprar o Citibank, o Morgan etc. Mas tem que ter R$ 300 bilhões! Um favelado pode comprar uma mansão no Morumbi. Nada o impede, a não ser sua capacidade financeira. Há coisas que são possíveis e impossíveis. É a velha e cediça história do leão e do cordeiro, iguais e livres.
Quem vai controlar essas empresas todas? A Anatel? Mas a Anatel ainda nem existe, os tecnocratas dizem que ela só tem 38% de pessoal para exercer sua função. A verdade é que quem compra será o dono da empresa. São gigantes internacionais, incontroláveis, que se estão fundindo para chegar a um estágio de monopólio. Farão tudo com um único objetivo: o lucro.
Tudo isso paga quatro meses de juros da dívida brasileira. Nosso pagamento de juros em 97 foi de R$ 53,2 bilhões, responsável por 80% do déficit público.
Não sou contra o capital estrangeiro. Sou contra o seu domínio completo. Devíamos ter a presença do capital nacional, com grande peso. O erro foi permitir 100% de capital estrangeiro. É o que se chama abertura selvagem, que começou em 1990.
Quando tudo isso estiver a pleno vapor, o capital investido retornando, os lucros e royalties também, estaremos definitivamente condenados a um estágio de colônia, pagando dízimos incomensuráveis. É o futuro? Não, é o passado.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.



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