São Paulo, sexta, 31 de julho de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice Universidade, do sagrado ao profano
Toda vez que o cinema nos mostra uma narrativa cujo cenário se baseia num ambiente universitário anglo-americano, é gritante a diferença aparente de "clima" em relação à comunidade universitária brasileira. Certamente, um dos motivos é a maturidade relativa: enquanto algumas universidades inglesas já celebraram 800 anos de existência, as mais antigas do Brasil têm menos de 70 anos. O espectador do filme "x" sente a diferença quando ouve coros de meninos cantando hinos cristãos renascentistas ou observa as procissões de docentes com becas e capuzes coloridos. Essas manifestações externas representam a ligação do presente com o passado, quando a educação superior era conduzida no seio das igrejas cristãs e a missão do docente era algo sagrado: a busca da verdade e a responsabilidade de passá-la a novas gerações. A universidade brasileira parece não ter (nem deseja) laços com o passado distante. Se dissermos que existe um eixo de pensamento e ações, com o "sagrado" de um lado extremo e o "profano" de outro, a universidade brasileira parece ter optado pelo segundo. Não é questão de modernidade ou democratização; é possível ter essas características em instituições que queiram preservar ressonâncias desejáveis do passado. Nem se trata de manter certas manifestações puramente externas ou exigir que os alunos se levantem quando o professor entra na sala. Trata-se de incorporar à vida acadêmica brasileira atitudes institucionais e pessoais que mostrem a todos, dentro e fora do campus, que o que se faz numa universidade é diferente do que se faz numa empresa ou num órgão governamental. Há algo de sagrado, nobre, especial e importante para a sociedade permeando o que acontece lá dentro. As universidades públicas no Brasil esqueceram sua missão sagrada e se tornaram repartições públicas, profanamente mais preocupadas com questões burocráticas do que com produzir conhecimento e novas gerações de profissionais, com elevado espírito cívico. As instituições se omitem da obrigação de criar laços afetivos com docentes e discentes. O costume é falar mal da instituição onde se leciona ou estuda. Todos trabalham apenas o mínimo necessário, sem sinergia uns com os outros e com pouco rendimento total. Em outros países, quando se criam sentimentos afetivos entre docentes e discentes, as instituições são compensadas com doações de bibliotecas, laboratórios e outras formas de reconhecimento pelos bons anos nelas passados. Mas nas universidades brasileiras não se encontra "esprit de corps" entre os docentes. É raro encontrar orgulho departamental ou institucional. Faltam também rituais que pudessem promover sentimentos de uma missão sagrada e de amor pela instituição. Em procissões acadêmicas, duas ou três vezes por ano (em cerimônias de formatura ou no aniversário da instituição, por exemplo), o corpo docente poderia se unir para um ato de inclusão, de solidariedade, de corporativismo (no bom sentido do termo), dando a toda a comunidade a idéia de respeito à tradição, à continuidade, ao sentimento de que muitas das ações na instituição têm suas origens nas universidades européias medievais e renascentistas. Muitas características da universidade brasileira militam contra o sagrado. Nas instituições públicas, normalmente, há uma sala para todos os docentes de um departamento. Nas particulares, o contrato como horista faz com que o docente não possa ou não queira ficar depois da aula. Assim, a falta de espaço para atendimento extraclasse rouba dos alunos a oportunidade de orientação profissional "sob medida" de alguém mais velho e experiente. Para todos os membros da sociedade, o professor universitário é apenas um funcionário (público ou não) contratado para dar aulas. Afasta-se toda noção mais elevada de que ele é um estudioso, um cientista, alguém que optou por não ter uma vida orientada fundamentalmente para objetivos materialistas e sim por lidar com idéias e linguagens, tentando constantemente reduzir os erros no raciocínio e no trabalho. Mundialmente, o professor universitário trabalha por uma "renda psíquica", por uma "recompensa intrínseca" -isto é, pelos prazeres da profissão que não são materiais ou pecuniários. Nas instâncias em que professores fazem greve, demonstram não só o justo descontentamento de quem vive com salários baixos, mas também sua patente desvalorização pela sociedade. No Brasil, considera-se o professor um trabalhador de chão de fábrica. Pelos decretos e leis promulgados pelo Estado, ele nada mais é do que alguém que exerce sua profissão num ambiente de produção em massa, em que a linha de montagem produz milhares de formandos para o mercado de trabalho. Os professores nem são considerados competentes para planejar com criatividade um currículo acadêmico (precisa-se de um ministério para estabelecer, de forma paternalista, o conteúdo dos estudos, homogeneizando e pasteurizando todos os cursos e desestimulando a originalidade e a inovação). Se as instituições educacionais brasileiras não começarem agora a tomar medidas para se reposicionar no eixo sagrado/profano (descobrindo como fazer seu corpo docente mais valorizado e autovalorizado, estimulando laços afetivos), é provável que a educação superior continue a preparar gerações de jovens profissionais que meramente "usam" a universidade, sem se sentir responsáveis por seu aperfeiçoamento nem como cidadãos -indivíduos- perante a sociedade (daí resulta a mensagem sagrada que a universidade deve deixar aos que nela se formam). Podemos e devemos inverter essa situação. Fredric Michael Litto, 59, é professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, coordenador da "Escola do Futuro" da USP e conselheiro acadêmico do Instituto de Tecnologia ORT, de São Paulo. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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