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Entrevista da 2ª - Suzana Herculano-Houzel

Falta incentivo a ideias originais na ciência no país

Neurocientista brasileira que vai dar palestra em evento global critica rigidez do ambiente de pesquisa no brasil

FERNANDO TADEU MORAES DE SÃO PAULO

A neurocientista Suzana Herculano-Houzel, 40, dedicou-se nos últimos anos a entender como o cérebro humano se tornou o que é. Seu trabalho a levou a ser a primeira brasileira convidada a falar no TED Global, famoso evento anual de conferências de curta duração que reúne convidados de várias áreas do conhecimento.

Herculano apresentará em sua fala de 15 minutos, nesta quarta, os resultados de suas pesquisas sobre como o cérebro humano chegou ao número incrivelmente alto de 86 bilhões de neurônios: o consumo de alimentos cozidos.

"Entre os primatas, temos o maior cérebro sem sermos os maiores. Grandes primatas com dieta de comida crua não têm energia para sustentar um corpo enorme e um cérebro grande."

Na entrevista, por telefone, a professora do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ dispara críticas à cultura brasileira de pesquisa científica, "que não incentiva a originalidade e a diversidade de pensamento" e à pós graduação nacional, "muito fraca", e defende a profissionalização da carreira de cientista.

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Folha - Sobre o que a sra. vai falar na palestra no TED?

Suzana Herculano-Houzel - Vou apresentar o resultado do trabalho do nosso laboratório, que mostra que o ser humano não é especial, que nosso desenvolvimento cerebral não foge às regras que se aplicam aos outros primatas.

Como o tamanho do cérebro acompanha, em geral, o tamanho do corpo, primatas maiores do que nós, como gorilas e orangotangos, deveriam ter um cérebro maior. No entanto, o gorila é duas a três vezes maior do que nós e temos um cérebro três vezes maior que o dos gorilas.

Descobrimos uma explicação metabólica para isso: quando calculamos a quantidade de energia que um primata obtém com a sua dieta de comida crua, vimos que eles não têm energia suficiente para sustentar um corpo enorme e um cérebro grande, com muitos neurônios.

Deveríamos obedecer à mesma regra, mas nossos ancestrais conseguiram burlar essa limitação. Esse jeito foi a invenção da cozinha, que tornou os alimentos mais fáceis de serem mastigados e digeridos e permitiu obter mais calorias em menos tempo.

Poderíamos pensar que isso nos torna especiais, só que, se você olhar a evolução do cérebro dos primatas, é possível perceber que há muito tempo existe uma tendência de aumento do tamanho do cérebro, mas nos nossos ancestrais e nos grandes primatas isso tinha encontrado essa barreira metabólica.

Duas grandes iniciativas de estudos sobre o cérebro nos EUA e na Europa, anunciadas recentemente, e os experimentos de interface cérebro-máquina, como os do brasileiro Miguel Nicolelis, receberam muita atenção da mídia. A sra. acha que as expectativas geradas com esses estudos podem resultar em frustração na sociedade?

Tudo depende de como as coisas são apresentadas. A forma como entendo a iniciativa do consórcio americano é compreender como o cérebro funciona como um todo. Mas, para vender isso para a mídia, eles têm que colocar o propósito da cura do alzheimer, porque as pessoas pensam: "Ah, isso é importante".

Mas é importante que a mídia dê valor a esses assuntos, para que as pessoas deem mais valor à pesquisa pelo conhecimento que geramos, e não só porque vamos curar doenças. Se o público aprender a reconhecer o valor da ciência pela ciência, não tem por que ter frustração. Se a pesquisa é bem feita, não existe fracasso.

Quais são os principais problemas na maneira como se faz ciência no Brasil?

Originalidade zero. Não existe incentivo à originalidade e à diversidade de pensamento. Quando eu cheguei nos EUA [para fazer o mestrado, em 1992], fiquei chocada ao descobrir que as pessoas lá não param cinco anos no mesmo lugar. Eles têm essa cultura de se mudar constantemente, o que favorece a diversidade de ideias.

Aqui, a tradição é entrar na iniciação científica em um laboratório e continuar nele durante o mestrado, o doutorado e o pós-doutorado.

Com isso, formamos jovens cientistas bitolados. Tudo o que eles sabem é pensar em detalhes daquele único assunto que vêm desenvolvendo desde a iniciação científica. E a política de contratação nas universidades privilegia os ex-alunos. Criam-se "colônias" sem diversidade.

Como a sra. vê o atual estado da pós-graduação no Brasil?

O nível de exigência aqui é baixíssimo. Nos EUA e na Europa, após um ou dois anos no doutorado, você tem que apresentar o seu projeto de pesquisa original e, antes disso, precisa apresentar outro projeto sobre um tema que não seja da sua área só para provar a capacidade de raciocínio autônomo e original.

Aqui, temos um teste de conhecimentos, no qual você precisa provar que domina um assunto, mas, com isso, incentiva-se a repetir e não a gerar algo novo. O aluno de doutorado aqui trabalha nas linhas de pesquisa de um determinando laboratório sem nenhuma exigência de que tenha contribuído de forma original para a ciência.

A formação dada pela nossa pós-graduação é ruim?

É fraca. Não porque faltem bons pesquisadores ou professores, mas porque não há cobrança, não se oferecem cursos com o professor ensinando na lousa, apenas seminários, como que dizendo: "O aluno que busque o conhecimento sozinho".

Como a senhora vê o programa federal de bolsas Ciência sem Fronteiras?

Francamente, não entendo esse programa. Do jeito que está, parece demagogia. Quando se começou a falar em Ciência sem Fronteiras, parecia um negócio extraordinário. Eu havia entendido que mandaríamos jovens cientistas para fora e abrir as nossas fronteiras para os estrangeiros que quisessem vir.

Poderíamos, quem sabe, acabar com o complexo de vira-lata da gente, de que só os outros prestam, ao atrair pesquisadores de outros países.

Não vemos isso acontecendo. O que se vê é uma porcentagem baixíssima de aprovação de projetos para trazer gente de fora, pouquíssimas bolsas para enviar jovens para fazer doutorado e pós-doutorado fora e uma massa enorme de dinheiro usada para mandar alunos de graduação para o estrangeiro, o que me choca pois, na minha avaliação, a graduação no Brasil é muito boa.

A sra. vem defendendo a profissionalização do cientista. O que é isso?

Minha proposta é que o jovem que faz ciência tenha esse trabalho reconhecido.

O primeiro problema é reconhecer que a pessoa que faz ciência tem um trabalho: cientista. Hoje, não posso preencher uma ficha de dados e declarar como minha profissão cientista. Essa profissão não existe.

Isso contribui para desvirtuar a pós-graduação, pois como o jovem que se forma não pode ser contratado como um pesquisador, a única maneira de ele continuar fazendo pesquisa é entrar para a pós-graduação, que vira tábua de salvação, única forma de continuar no laboratório. E eles são a verdadeira mão de obra da pesquisa no Brasil.

O número de publicação de artigos no país vem crescendo de mãos dadas com o aumento no número de alunos de doutorado. Quem faz a pesquisa são esses "alunos" da pós-graduação que, para mim, são cientistas, trabalhadores, que deveriam ser reconhecidos como tais, com direitos e deveres.

Como tem sido a repercussão dessas ideias?

Críticas só de longe, por e-mail, sem mostrar a cara. Recebo muito apoio de alunos. Não entendo por que a ideia de profissionalizar a ciência incomoda tanto. Mas as pessoas que se incomodam são as que estão lá no alto, diretores de institutos. Fica a impressão ruim de que eles não querem perder a mão de obra quase de graça.

É comum ouvir: "Você está ganhando dinheiro para estudar". Esse é o tipo de mentalidade que mata a ciência. Isso é uma herança do século 18, pois os primeiros cientistas eram diletantes de famílias ricas, que não precisavam de dinheiro. Hoje a realidade é outra, mas faltou mudar essa parte da pesquisa ser reconhecida como trabalho que é.


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