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Entrevista da 2ª - Beatriz Sarlo

Acreditava que, em viagens, conheceria sujeitos da revolução

Em livro, ensaísta Argentina revê ideais dos anos 1960 e 70 em rotas pela América Latina

SYLVIA COLOMBO DE SÃO PAULO

Como Che Guevara, ela atravessou a América Latina de mochila, entrevistou mineiros e camponeses, dormiu entre as ruínas de Machu Picchu e passou a noite num leprosário. Eram as décadas de 1960 e 70, revolucionárias, mas assombradas pelas ditaduras.

Os anos se passaram, e Beatriz Sarlo, de militante maoísta se transformou na principal ensaísta e intelectual argentina. Hoje, aos 72, é crítica dos arroubos ideológicos daqueles tempos e é voz ativa contra o governo esquerdista de Cristina Kirchner.

Em "Viajes - De la Amazonia a las Malvinas" (ed. Seix Barral, importado), Sarlo revisita o continente com os olhos da experiência acumulada. "Eu acreditava, com ingenuidade, que minhas viagens por esses territórios me permitiam conhecer os futuros sujeitos de uma revolução continental que julgava tão inevitável como próxima", afirma. "Tinha uma confiança cega na experiência."

O tom não é de desilusão, mas trata-se, sim, de um registro autobiográfico cheio de emoção e autocrítica.

O primeiro ensaio do livro é um duro ataque ao modo como se viaja nos dias de hoje, em que as pessoas sentem que estão comprando experiências segundo um roteiro, quando o que de fato dá significado às viagens são os momentos "fora de percurso".

Estão, ainda, no volume, um ensaio sobre visita a Brasília, e o relato de sua primeira e provável última ida às ilhas Malvinas, em 2013.

Leia os principais trechos da entrevista que Sarlo concedeu à Folha por telefone e e-mail, de Buenos Aires.

Folha - A sra. critica o modo como se faz turismo nos dias de hoje. Como vê a diferença entre os que viajam por turismo e os que viajam com interesses antropológicos ou jornalísticos, como a sra.?
Beatriz Sarlo - O turismo deixou de ser, nos últimos 50 anos, uma atividade das elites econômicas ou intelectuais. Isso é algo a ser celebrado. Essa massificação deu ao mercado turístico a função de grande planejador. É o mercado quem desenha os cardápios turísticos, fixa os itinerários, define o que é pitoresco, o que vale a pena ser visitado e fotografado.
A América Latina não foi um território turístico até bem entrado o século 20. Visitava-se o Rio, Machu Picchu ou Teotihuacán, mas o que existe de qualitativamente distinto é o turismo nas zonas que não haviam sido pensadas como "visitáveis". Quando, jovem, eu viajei para a Amazônia peruana, ou visitei as minas de Oruro (Bolívia) ou a Puna, no norte argentino, esses não eram territórios turísticos. Nem sequer Brasília o era.

A sra. diz que, nas viagens pela América do Sul, nos anos 1960/70, buscava uma "aura revolucionária" da região, como o Che Guevara dos "Diários de Motocicleta". E que isso, hoje, seria impossível. Por quê?
Eu acreditava, com ingenuidade, que minhas viagens por esses territórios me permitiam conhecer, em seu próprio teatro, os futuros sujeitos de uma revolução continental que julgava tão inevitável como próxima.
Acreditava na autenticidade desses sujeitos e, mais, que meu olhar ia poder descobri-los. Sem ter lido Walter Benjamin, confiava na aura da experiência direta, em seu potencial de empatia. Não duvidava que era possível comunicar-me com etnias amazônicas ou mineiros bolivianos ou camponeses do altiplano, inclusive quando não falava suas línguas nem conhecia sua cultura.
Pensava que entre eles e eu, uma universitária, não houvesse um abismo cultural. E se esse abismo se manifestava, minha aposta era que a experiência direta era capaz de tapá-lo. Tinha uma confiança cega na experiência. Isso me permitiu um conhecimento que só décadas depois pude organizar numa narrativa.

Quando a sra. lê sobre o que aconteceu a esses países hoje, o que pensa?
Naquela época, a Bolívia foi o país que eu mais quis e admirei: povos subjugados e combativos, mineiros mobilizados por sindicatos trotskistas, uma central trabalhista em permanente conflito, nacionalismos de toda espécie.
Voltei no começo dos anos 1970, quando estava governando o general Juan José Torres (1970-71), um militar anti-imperialista, e pensei em ficar lá. La Paz estava fervendo: centenas de camponeses, de mineiros, de trabalhadoras com seus filhos nas costas entravam e saíam da casa de governo. As mobilizações eram gigantescas. Pouco depois, em 1971, o general Torres foi derrotado [começa a ditadura de Hugo Banzer]. Assim terminava aquela etapa fugaz que me entusiasmou enquanto ia ocorrendo, como se a história passasse diante dos meus olhos. Custa para mim separar essas memórias do atual processo boliviano, especialmente das origens do presidente Evo Morales. Torres também era mestiço.
No caso do Brasil, tínhamos uma ideia que não era tão diferente do que aconteceria nas décadas seguintes. Não sei por que intuição, acreditávamos na potência do Brasil, e sobretudo, em seu imaginário futurista.

O que significou o Brasil em suas viagens de juventude?
Fomos motivados por um desejo vanguardista, a conhecer Brasília, que, a meados dos anos 1970, era ainda uma cidade nova, deserta. Admirávamos o gesto desenvolvimentista e vanguardista de Juscelino e Niemeyer. Por isso, não nos concentramos no Rio. Florianópolis não figurava na lista de destinos turísticos como hoje. Nem mesmo Salvador. Só queríamos chegar ao emblema da modernidade estética e política que nos parecia ser Brasília. Algumas das fotos que fizemos lá mostram a cidade sem gente, como nunca hoje poderia ter sido fotografada.

Há um salto de tempo grande entre as viagens pela América Latina e a das Malvinas, em 2013. Por que a sra. decidiu incluir as ilhas no volume?
Essa viagem recente foi tão importante como a dos anos de minha formação. Fui às ilhas como jornalista, mas escolhi hospedar-me na casa de uma família, em Stanley (Puerto Argentino, a capital).
Entrei em contato com uma cotidianidade da ilha que nunca pude imaginar. Encontrei uma espécie de aldeia do norte da Inglaterra, com dois pubs, um proletário, outro de classe média, seus jogos de dardos e suas mesas de bilhar, com sua igreja e uma escola grande, com largos corredores com janelas dando para a baía. Nas margens, um bulevar marítimo onde os monumentos lembram batalhas e a vitória sobre a invasão argentina.
No respaldo de um banco desse passeio está gravada a inscrição: "do mar, a liberdade". Os dias que passei nas Malvinas me permitiram entender que essas ilhas tinham uma autonomia cultural e linguística. Essa compreensão é essencial para mitigar qualquer nacionalismo argentino. Por tudo isso incluí essa viagem. E também porque, talvez, seja a última viagem importante de minha vida.


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