Viagem ao Xingu
Indígenas do Xingu querem reconhecimento do Quarup como patrimônio nacional e protestam contra o que consideram ameaças da chamada Agenda Brasil
Os índios do Xingu, no coração geográfico do Brasil, estão em festa. É tempo de celebrar mortos e comemorar a vida com o Quarup. Neste domingo (23), encaminham pleito para que o ritual seja reconhecido como patrimônio cultural nacional.
Ao mesmo tempo, índios de todo o país estão apreensivos e revoltados. Protestam contra a Agenda Brasil, levada ao governo pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL). Consideram que algumas propostas colocam em xeque direitos conquistados.
Em manifesto na semana passada, 150 lideranças indígenas afirmaram que as propostas "só irão agravar as crises hídrica, climática e política. Ou seja, além das catástrofes ambientais, implicarão o aumento dos conflitos e das violências contra os nossos povos".
Eles condenam quatro pontos da agenda. Um deles é o que propõe rever marcos jurídicos de áreas indígenas "como forma de compatibilizá-las com as atividades produtivas". Identificam no texto genérico mais um ataque do Legislativo, onde já tramita a polêmica proposta que confere ao Congresso a prerrogativa de demarcação de terras, atribuições hoje exclusiva do Executivo.
Os índios também protestam contra os itens que pedem revisões do marco jurídico da mineração e da legislação de licenciamentos.
Neste fim de semana, quando assistirá ao Quarup da aldeia Kuikuro, no Xingu, o ministro Juca Ferreira (Cultura) deve receber a solicitação oficial das etnias para que a cerimônia vire patrimônio cultural. Na semana passada, ele ouviu protestos de indígenas.
"Os povos indígenas sofrem o maior ataque sistemático aos seus direitos. Direitos consagrados na Constituição e nos tratados internacionais. Com a chamada Agenda Brasil, querem utilizar nossas terras como moeda de troca para a suposta superação da crise. Isso não iremos admitir".
As palavras foram ditas por Sonia Guajajara, 41, da coordenação executiva da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). A fala ocorreu no encerramento do 2º Fórum Nacional de Políticas Indígenas, em São Paulo, no último dia 15.
Na sala lotada de indígenas, o histórico líder caiapó Raoni Metuktire, 85, também demonstrou preocupação: "Índio precisa de terra para garantir a continuidade da cultura, das tradições. É preciso respeitar as áreas demarcadas. Somos autoridade também, precisamos ser ouvidos e respeitados".
Em seu discurso, Ferreira respondeu: "Não podemos permitir que a barbárie, o que há de pior na sociedade, nos represente junto a vocês, tomando as terras de vocês, agredindo as mulheres de vocês, massacrando aldeias, ameaçando de morte as lideranças. Não é possível. Estão de olho nos conhecimentos que vocês têm sobre a floresta, nos minerais que as terras de vocês por ventura tenham."
Segundo o ministro, "é inadmissível que um governo popular democrático não assuma o compromisso com os povos indígenas".
Ferreira foi aplaudido quando se dispôs a percorrer ministérios com indígenas para tratar de suas demandas. A representante da Funai no evento nada falou.
RITUAL
Na aldeia kamaiurá, no Xingu, a preservação da terra, da cultura, do ambiente e a conquista por melhores condições de saúde estão no centro das prioridades.
Semanas antes da divulgação da Agenda Brasil, o cacique Kotok falou de sua preocupação com a saúde e o agronegócio: "O desmatamento está se aproximando, a queimada está chegando na reserva. Jogam veneno na soja plantada e o veneno está no rio, afeta nossa saúde, dá diarreia", disse.
Kotok, 57, foi o anfitrião do Quarup em homenagem a seu pai, o cacique e pajé Tacumã (1932-2014), figura histórica na luta pela criação do parque do Xingu. Cerca de mil pessoas participaram do ritual fúnebre e da festa no fim de julho.
Com peixe e beiju, indígenas choraram, dançaram e tocaram flautas. A reportagem acompanhou a preparação da festa e o cotidiano da aldeia. O ápice foi no domingo 25 de julho, quando representantes de várias tribos se enfrentaram na huka huka, luta tradicional, de ritmo rápido e feroz.
O embate mais amplo dos indígenas tem outra dinâmica, especialmente a partir da Agenda Brasil. "O cenário não é bom. A certeza é de que continuaremos a fazer o enfrentamento e a resistência", diz Sonia Guajajara.
NA INTERNET
Outras reportagens em
folha.com/viagem-ao-xingu