Nome de romance, o ritual dos mortos celebra a vida
Foi com "Quarup", romance de Antônio Callado, que o ritual entrou no vocabulário e no imaginário de uma geração. O livro de 1976, em plena ditadura, falava de protestos, revoluções pessoais e políticas, valorização do coletivo.
O individualismo narcisista dava lugar à busca pelo "homem novo", aquele que abraçava a ideia da igualdade inspirado nas tradições dos índios do Xingu. A obra expôs os dilemas de uma época, para além de romantismos utópicos.
Os tempos mudaram, mas o Quarup permanece. Ritual que homenageia mortos, também celebra a vida. Mexe com a dinâmica das aldeias, gera reflexões, amplia laços, expõe disputas, reforça tradições.
Não que esteja tudo igual. O cacique Kotok diz que a festa está diferente, mais colorida. Atento aos números, conta que gastou R$ 4.000 com linhas multicolores. No passado o visual das danças e das lutas tinha um tom mais pastel, só com palhas recolhidas nas redondezas. "A rapaziada quer tudo colorido."
O sábado começa agitado. Os homens pintam, quase secretamente, os troncos que simbolizam os mortos homenageados. Depois, eles são enfeitados com linhas coloridas e penas. Expostos no meio da aldeia, são reverenciados durante todo o dia.
À pé, de moto, barco e caminhão chegam índios de tribos convidadas. Famílias acampam ao redor da aldeia, no mato. Alguns soltam fogos.
À noite, à luz de fogueiras, os que estão de luto choram ao redor dos troncos. É um ritual intenso. Músicos das etnias visitantes fazem cantorias. Ninguém dorme.
Enroscada em um xale, a arqueóloga Jandira Neto assiste a tudo. Depois, relata suas impressões: "Os kamaiurá mantêm o culto a seus mortos como o faziam há 2000 anos. O sentido do ritual, a dor e o luto presentes ainda mostram cenas que poderiam ser descritas por Hans Staden em seu livro 'Duas Viagens ao Brasil' (de 1557). A sensibilidade e a riqueza de detalhes da obra sempre me arrancaram lágrimas e arrepios".
Para ela, do Instituto de Arqueologia Brasileira, o Quarup é uma expressão de "resistência a toda a forma de dominação, violência e espoliação sofrida durante tantos séculos". Ela ressalta a capacidade indígena de se manter fiel às tradições.
No domingo, o luto acaba e só importa vibrar com o torneio de huka huka. Aos poucos, os visitantes pegam o caminho de volta. Antes, trocam presentes e alimentos, no ritual "moitará".
Mais tranquilo, Kotok faz o balanço do Quarup: "Fiquei um pouco envergonhado porque pegamos muito pouco peixe. Mil e pouco [quilos] de peixe. Precisava de dois mil, três mil. Foi bom que passamos a noite toda para finalizar nosso luto, para espiritual ir embora para a aldeia lá no céu. Nos despedimos ontem de meu pai. A luta foi boa. A festa foi boa. Foi muito duro, mas consegui resolver tudo, para todo mundo não sair triste e brabo".