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Minha história - Caio Cipro, 30

Valentia Antártica

Caio Cipro, pesquisador e testemunha do incêndio na base brasileira na Antártida, relata como foram as horas após o resgate do único ferido

Jorge Araújo/Folhapress
Caio Cipro, que estava na base brasileira na Antártida quando ocorreu o incêndio, é cientista da USP
Caio Cipro, que estava na base brasileira na Antártida quando ocorreu o incêndio, é cientista da USP

EDUARDO GERAQUE
DE SÃO PAULO

RESUMO

Na madrugada do último dia 25 de fevereiro, um incêndio que começou na sala dos geradores consumiu por volta de 70% da Estação Brasileira Comandante Ferraz, na Antártida. No episódio, dois militares da Marinha do Brasil, o praça Carlos Alberto Figueiredo e o sargento Roberto Lopes dos Santos, morreram. O sargento Luciano Gomes Medeiros, com ferimentos graves nas mãos e em partes do corpo, teve de ser resgatado rapidamente para ser tratado. Coube ao pesquisador da USP Caio Cipro acompanhar o militar ferido.

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O momento que simboliza tudo para mim é a chegada à base polonesa de Arctowski, no início da manhã do dia 26.

O piloto do bote diz:"Espera aí". Ele sobe o zíper da roupa impermeável até o queixo e pula na água quase congelada para, literalmente, levar o bote no braço até a praia.

A bordo estavam mais um polonês, eu e o [sargento Luciano] Medeiros, com as duas mãos visivelmente queimadas e com um princípio de hipotermia. Mais o motor, que não é leve.

Sou obrigado a dizer que os poloneses foram valentíssimos. O mar estava horrível, muito ruim mesmo. Um deles pilotou muito bem, à noite. O outro ficou lá na frente, com meio corpo para fora, tirando o gelo com um remo.

Estava no bote porque queriam alguém que falasse inglês e espanhol para acompanhar o Medeiros. Eles me pediram para deixá-lo acordado o tempo todo.

Por causa do resgate, fui um dos primeiros a deixar a região da base brasileira na noite do incêndio. Antes do alerta de fogo, estava tudo tranquilo. Só me dei conta mesmo das proporções do acidente quando deixei a base em direção ao heliponto.

As chamas atingiam a altura de um prédio de três andares. O canto direito da base, visto da praia, estava sendo consumido pelo fogo.

Era por volta de 1h de sábado. Um pouco antes, estava deitado no meu camarote vendo e-mails no computador. A luz oscilou. Ela caiu e depois de alguns minutos voltou. Saí no corredor, não vi ninguém e não ouvi o alarme.

Quando voltei a sentar na cama, um colega pesquisador abriu a porta do quarto e anunciou o incêndio. Saí literalmente com a calça na mão. Quando estávamos todos na sala, dois ou três minutos depois, veio o aviso para abandonar a base.

Lá fora estava frio, fazia um pouco menos de zero grau. Felizmente não nevava.

Durante a madrugada, as pessoas se dividiram entre os dois módulos que existem perto do corpo principal da base. Quando cheguei em um deles, o de Química, lá estava o Medeiros, recebendo os primeiros socorros.

Não havia confirmação das mortes, mas existia uma certa inquietação. Algumas pessoas tinham dado falta do Santos e do Carlos Alberto. Outras, devido à situação confusa, disseram que viram eles combatendo o fogo.

Por volta das 4h30, estava muito escuro ainda, mas vi quando os botes dos poloneses estavam chegando. Eram dois, mas eles vinham tão alinhados que achei que fosse um barco só, maior.

Antes de a luz cair, os responsáveis pela base brasileira conseguiram falar com Brasília e provavelmente com as outras bases da região também. Como os contatos se perderam com a queda de luz, os poloneses decidiram navegar até Ferraz.

Após eles chegarem, as conversas foram rápidas e logo houve a decisão pela remoção do Medeiros. Além de poder ajudar na tradução, também sabia o que tinha ocorrido desde o início. Essas informações seriam pedidas, depois, pelos médicos que atenderam o brasileiro.

Em Arctowski, depois de a minha admiração pelos poloneses realmente ficar ainda maior, chegou rapidamente um médico chileno. Eles resolveram que o Medeiros seria colocado em um helicóptero e levado para a base chilena, a Eduardo Frei. Em minutos, estávamos a bordo.

O tempo todo o Medeiros perguntava pelos amigos. Em Frei vivi o momento mais difícil. O comandante da base havia me dito que o [Roberto] Santos e o Carlos Alberto [Vieira] tinham morrido.

Por mais que houvesse a desconfiança, foi muito difícil. Já os conhecia. O "Santinho" estava sempre com a gente. No bote, no mar.

Também resolvi que não era a pessoa indicada para dar a notícia ao Medeiros. Aquela não era a hora e nem ali era também o lugar.

Veio a decisão de que o Medeiros seria levado para Bellingshausen, a base russa, que fica bem perto.

Na cirurgia, os médicos retiraram todo o tecido morto das mãos para evitar necrose e eventuais sequelas.

Quando ele saiu da cirurgia, percebi que as costas dele também estavam bastante queimadas. Mas os médicos me tranquilizaram. Ele voltaria ao Brasil com a gente.

O clima do voo de volta era o pior possível. Todos cabisbaixos, não querendo nem falar, chateados por causa das perdas. Apesar do acidente e das mortes, as pesquisas vão continuar e quero voltar a trabalhar na Antártida, na base brasileira.

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