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Entrevista da 2ª / Viviane Senna

Precisamos da eficiência do setor privado nas escolas

VIVIANE SENNA FALA À FOLHA SOBRE O TRABALHO QUE A LEVOU A GANHAR UM DOS MAIS IMPORTANTES PRÊMIOS DE EMPREENDEDORISMO SOCIAL

SABINE RIGHETTI
DE SÃO PAULO

A família Senna ganhou mais um troféu internacional. Mas a corrida desta vez -longa, com obstáculos e aparentemente sem fim- é pela melhoria da educação no Brasil.

O trabalho da psicóloga Viviane Senna, criadora do instituto que leva o nome do irmão Ayrton, morto em 1994, foi finalista do Grand Prix do banco francês BNP Paribas -o sétimo maior do mundo.

Essa é a primeira vez que o BNP Paribas reconhece o trabalho de um empreendedor social nas Américas.

Viviane concorreu com nomes de 90 países. A escolha -por unanimidade- veio de um júri internacional robusto, coordenado pelo Nobel de Economia Amartya Sen, que criou o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).

Hoje, o Instituto Ayrton Senna atende dois milhões de crianças em 1.300 municípios. Elas não ficam em nenhum prédio do instituto, mas sim na escola. É lá que o instituto age para capacitar professores e melhorar a educação.

Mas a corrida não está ganha. Metade das crianças que entra na escola no Brasil não conclui o ensino básico."Falta levar a eficiência do setor privado para as escolas públicas", analisa Viviane.

Em Paris, onde recebeu a premiação, ela conversou com a Folha pelo telefone.

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Folha - A sra. tem realizado um trabalho importante em educação no Brasil há 18 anos. O que a levou a ganhar o prêmio do banco agora?
Viviane Senna - Soube que o júri ficou impressionado com a escala do trabalho do instituto [atendendo dois milhões de crianças]. O júri comentou comigo depois que nunca viu um trabalho com essa escala, é algo inédito no mundo.
O instituto mostra que podemos ter um trabalho em larga escala de maneira eficiente. Hoje o que vemos na educação pública é um cenário de larga escala, que atinge a quase totalidade das crianças no início da idade escolar, mas não tem qualidade.

Ou seja, a educação pública brasileira tem quantidade, mas não tem qualidade.
Sim, o desafio do Brasil é pôr quantidade e qualidade na mesma equação. Hoje, o Estado faz bem só a quantidade. A rede pública atende quase a universalidade das crianças -98%, o que dá cerca de 50 milhões. É uma Espanha inteira. Mas a qualidade caiu muito.
Há algumas décadas era o contrário: a educação pública tinha qualidade, mas atendia poucos. Hoje, continuamos tendo uma educação para poucos, pois a qualidade está concentrada no setor privado.
A cada dez crianças que entram na 1ª série, só cinco saem do ensino básico. Perdemos metade das crianças do país nesse trajeto. Isso é muita ineficiência!
Imagine se uma empresa como a Vale perderia metade do seu minério no transporte? Ou se um hospital perdesse 50% dos pacientes? É isso que fazemos com o principal capital do país, a educação.

Essa ineficiência é resultado da priorização da quantidade?
O problema não é apenas a quantidade. Há países que têm muitas crianças no setor público e não fazem esse estrago na educação. É um problema basicamente de gestão.
Não temos uma cultura no sistema público de foco em resultados, de acompanhamento das atividades. A cultura da eficiência é privada. Temos escolas que não ensinam e, por isso, temos crianças que não aprendem ou aprendem muito pouco.
Então a criança começa a repetir, vai ficando cada vez mais atrasada e, depois de muitos fracassos, acaba desistindo da escola.

A própria escola o expulsa?
Sim. A criança não desiste logo, os estudos mostram que a criança fica insistindo na escola. Mas a educação é um investimento e, se a criança não evoluir, ela deixa a escola.
As famílias tiram a criança da escola não porque não gostam de ver os filhos estudando, mas porque não veem resultados. O sistema expulsa a criança.
As razões alegadas para esses péssimos resultados são equivocadas. Antigamente diziam que as crianças brasileiras eram subnutridas e, por isso, não aprendiam. Mas isso não é verdade.
Não temos um padrão africano de pobreza, com exceção de algumas localidades. Dizer que a criança brasileira não aprende porque está subnutrida é lenda. Outra lenda, mais atual, é que as crianças mais pobres não aprendem porque têm família desestruturadas.

Mas a pobreza e a família desestruturada não prejudicam o aprendizado das crianças?
Claro que são um fator contra a educação. Mas não podemos lavar as mãos e simplesmente dizer que não temos como fazer a criança aprender.
Não podemos esperar as crianças enriquecerem e que tenham famílias estruturadas para ensiná-las. É exatamente o contrário: justamente essas crianças pobres e com problemas na família é que precisam de uma ação agora.
As crianças brasileiras são pobres, não são crianças belgas. E a escola brasileira tem de ser feita para a criança brasileira. Mas nós continuamos fazendo uma escola para quem tem condições de aprender sozinho em casa.
Calcula-se que a escola represente apenas 30% do que uma criança brasileira aprende, o que é chamado de "efeito escola". Já o "efeito família" é 70%. A escola deveria ser determinante no aprendizado infantil, mas ela é tão fraca que o papel da família acaba tendo um peso muito maior.
É como se estivéssemos dando um remédio diluído para nossas crianças. O remédio está lá, mas não fará efeito. A escola pública hoje é um estacionamento de crianças. Ou uma lanchonete, um lugar que a criança vai para comer -outra ideia equivocada. A escola tem de ser o lugar para se ensinar.

Soube que seu discurso ao receber o prêmio fez parte da plateia de 300 pessoas chorar.
Eu dei o exemplo de uma criança pobre e analfabeta do interior de Pernambuco que passou pelo programa que desenvolvemos com Estados e municípios para melhorar a gestão da escola e para capacitar os professores.
Na cidade da garota, 70% da população vive abaixo da pobreza. O IDH segue padrão africano, perto de Botsuana.
Ela conseguiu chegar ao ensino médio, não deixou a escola no meio do caminho porque se sentiu atraída por ela. E, por ter concluído o ensino médio, ela passou a ter apenas 0,3% de chance de ser pobre.
No Brasil, quem tem ensino médio sai "automaticamente" da ponta da população mais pobre. Foi como se tivéssemos dado para a garota um passaporte, se tivéssemos tirado ela de Botsuana para colocar em outro país.
Com isso quebramos o elo entre ignorância e pobreza, começando pela ignorância. É isso que tem de ser feito no país.

Qual sua percepção da evolução da educação do Brasil desde que a sra. iniciou o projeto?
No começo, em meados da década de 1990, houve uma piora. Depois melhorou um pouco. Estamos fazendo um movimento em direção da melhora da educação, mas é um movimento lento. Ter 10% ou 20% de eficiência na educação, ou seja, colocar dez crianças na escola e formar uma ou duas ainda é muito pouco.
Temos de tornar o sistema público mais capaz de realizar a sua própria função.
O que fazemos no instituto é justamente transformar a escola para torná-la capaz de realizar sua função. Não fazemos atendimentos no varejo, formamos pessoas em larga escala. Por isso conseguimos atender tantas crianças.

Como surgiu essa ideia de trabalhar nas escolas e não atendendo crianças?
Desde que criei o instituto, bati muito a cabeça. No começo fazia como a maioria das ONGs: atendimentos a um certo grupo de crianças. Nos primeiros dois anos, estávamos atendendo 40 mil crianças.
Era como seu eu estivesse construindo uma Disneylândia, ou seja, um mundo ideal para um pequeno grupo. Mas e quem estivesse fora?
Até que entendi que o problema no país é de larga escala. Por isso temos de desenvolver soluções que sejam capazes de atender no atacado.
Temos de fazer larga escala com eficiência porque fazer baixa escala de qualidade ou larga escala ineficiente não resolve. Por isso, transformei o instituto em um centro de produção do conhecimento.

Como isso funciona?
É como em um laboratório de pesquisa. Não adiantar resolver problemas pontuais e curar cada paciente por vez desenvolvendo um remédio específico para cada um.
É preciso desenvolver um remédio ou uma vacina que funcione em larga escala.
A ideia foi ter um instituto especializado em produzir conhecimento. Formamos cerca de 70 mil professores por ano. É mais do que formam as escolas de pedagogia do Brasil.
Por isso recebemos a Cátedra da Unesco, dada apenas a universidades e centros de pesquisa. [Em 2004, o instituto foi a primeira ONG a integrar a rede de cátedras].

Qual é a maior dificuldade?
Existe uma série. A principal é trabalhar em larga escala porque o Brasil é muito grande e tem uma série de gargalos. Além disso, temos um problema de governança.
Quando muda o prefeito ou o governador, mudam as políticas e os projetos são interrompidos. Isso é um grande problema do Brasil.

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