São Paulo, terça-feira, 02 de novembro de 2010

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ENTREVISTA FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

FHC diz não endossar PSDB que não defenda sua história

Para ex-presidente, "entramos num marquetismo perigoso, que despolitiza. Liderar é transformar em problema o que a população não vê como problema"

MARIA CRISTINA FRIAS
COLUNISTA DA FOLHA
VINICIUS MOTA
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"Não estou mais disposto a dar endosso a um PSDB que não defenda a sua história", disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), ontem, em entrevista no instituto que leva seu nome, no centro de SP.
Presidente de honra do PSDB, Fernando Henrique defende que o partido anuncie dois anos antes das eleições presidenciais seu candidato. "O PSDB não pode ficar enrolando até o final para saber se é A, B, C ou D."
O ex-presidente diz que Lula "desrespeitou a lei abundantemente" na campanha e que promove "um complexo sindical-burocrático-industrial, que escolhe vencedores, o que leva ao protecionismo".
Para FHC, a tradição brasileira de "corporativismo estatizante está voltando". Lula é uma "metamorfose ambulante que faz a mediação de tudo com tudo".

Folha - José Serra aproveitou a oportunidade do segundo turno como deveria? Fernando Henrique Cardoso - Serra foi fiel ao estilo dele. Tomou as decisões na campanha, com o [marqueterio Luiz] Gonzalez. Não fez diferente do que se esperaria de Serra como um candidato que define uma linha e vai em frente. O PSDB, e não o Serra, tem outros problemas mais complicados. Precisa ter uma linguagem que expresse o coletivo. Os candidatos esqueceram a campanha e não definiram o futuro. O nosso futuro vai ser fornecer produtos primários? Ou vamos desenvolver inovação, a educação, a industrialização? Isso não foi posto.

O governo Lula patrocina a formação de grandes empresas, uma espécie de complexo "industrial-burocrático". Qual a diferença para o seu governo, que também usou o BNDES nas privatizações?
Tudo é uma questão de medida. Os fundos [de pensão] entraram na privatização porque já tinham ações nas teles e participar do grupo de controle lhes dava vantagem. Mas tive sempre o cuidado da diversificação.
O problema agora é de gigantismo de uns poucos grupos, nesse complexo, que na verdade é sindical-burocrático-industrial, com forte orientação de escolher os vencedores. Isso é arriscado do ponto de vista político e leva ao protecionismo.

A fila do PSDB andou? Chegou a vez de Aécio Neves para presidente?
Eu não posso dizer que passou a primeiro lugar, mas que o Aécio se saiu bem nessa campanha, se saiu. Não posso dizer que passou a primeiro lugar porque o Serra mostrou persistência e teve um desempenho razoável.
Não diria que existe um candidato que diga "Eu naturalmente serei". Mas o PSDB também não pode ficar enrolando até o final para saber se é A, B, C ou D. Dentro de dois anos temos de decidir quem é e esse "é" e tem de ser de todo mundo, tem de ser coletivo.
Não estou disposto mais a dar endosso a um PSDB que não defenda a sua história. Tem limites para isso, porque não dá certo. Tem de defender o que nós fizemos. A privatização das teles foi boa para o povo, para o Tesouro e para o país. Do ponto de vista econômico, as questões estão bem encaminhadas. O problema não é saber se a economia vai crescer, é se a sociedade vai ser melhor.

Houve sinais do que o sr. chama de "espírito" da democracia no processo eleitoral?
Não vejo. O presidente Lula desrespeitou a lei abundantemente. Na cultura política, regredimos. Não digo do lado da mecânica institucional -a eleição foi limpa. Mas na cultura política, demos um passo para trás, no caso do comportamento [de Lula] e da aceitação da transgressão, como se fosse banal.
Aqui ocorre outra confusão: pensar que democracia é simplesmente fazer as condições de vida melhorarem. Ela é também, mas não se esqueça que ditaduras fazem isso mais depressa.

Como o sr. vê a volta de temas como religião na campanha?
Com preocupação. O Estado é laico, e trazer a questão religiosa para o primeiro plano não ajuda.

A dose dos marqueteiros nas campanhas está exagerada?
Sim, em todas as campanhas. Nós entramos num marquetismo perigoso, que despolitiza. Hoje a campanha faz pesquisas e vê o que a população quer naquele momento. A população sempre quer educação, saúde e segurança, e então você organiza tudo em termos de educação, saúde e segurança.
Sem perceber que a verdadeira questão é como você transforma em problema algo que a população não percebeu ainda como problema. Liderar é isso. Você abre um caminho. A pesquisa é útil não para você repetir o que ela disse, mas para tentar influenciar o comportamento a partir de seus valores.
O que nós temos na campanha é a reafirmação dos clichês colhidos nas pesquisas. Onde é que está a liderança política, que é justamente você propor valor novo. O líder muda, não segue.


A polarização nacional entre PT e PSDB completou 16 anos. Tem feito mais bem ou mais mal ao Brasil?
O que o Chile fez na forma da Concertação [aliança entre Partido Socialista e Democracia Cristã que governou o país de 1990 a 2010], fizemos aqui sob a forma de oposição. Há muito mais continuidade que quebra. O pessoal do PT aderiu grosso modo ao caminho aberto por nós. Isso é que deu crescimento ao Brasil. Agora tem aí o começo de um rumo que não é mesmo o meu, que é esse mais burocrático-sindical-industrial. E tem uma diferença na concepção da democracia.

O que seria essa social-democracia tucana?
Social-democracia, vamos devagar com o ardor. O sujeito da social-democracia europeia eram a classe trabalhadora e os sindicatos. Aqui são os pobres. O Lula deixou de falar em trabalhador para falar em pobre. Mudou. Nós descobrimos uma tecnologia de lidar com a pobreza, mas estamos por enquanto mitigando a pobreza.
Tem de transformar o pré-sal em neurônio. Esse é o saldo para uma sociedade desenvolvida. Está se perfilando, no PT e adjacências, uma predominância do olhar do Estado, como se o Estado fosse a solução das coisas.

Então a diferença entre PT e PSDB, para o sr., se dá em relação ao papel do Estado.
A nossa tradição é de corporativismo estatizante, e isso está voltando. É uma mistura fina, uma mistura de Getúlio, Geisel e Lula. O Lula é mais complicado que isso, porque é isso e o contrário disso. Como é a metamorfose ambulante, faz a mediação de tudo com tudo. Lula sempre faz a mediação para que o setor privado não seja sufocado completamente. Não sei como Dilma vai proceder.

Isso tende a se aprofundar nesse novo governo?
A segunda parte do segundo mandato de Lula foi assim. A crise global deu a desculpa para o Estado gastar mais. E o pobre do [John Maynard] Keynes pagou o preço. Tudo é Keynes. Investimento não cresceu, gasto público se expandiu, foi Keynes.
Não acho que o Brasil vá no sentido da Venezuela porque a nossa sociedade é mais forte. Aqui há empresas, imprensa, universidades, igrejas, uma sociedade civil maior, mais forte. Isso leva o governo a ter cautela. Veja o discurso da Dilma de ontem [domingo]. Ela beijou a cruz. Ela tem que dizer isso, que vai respeitar a democracia, porque senão não governa.

O que esperar de Dilma?
Não sabemos o que ela pensa, nem como é que ela faz. O Brasil deu um cheque em branco para a Dilma. Vamos ver o que vai acontecer com a conjuntura econômica. Há um problema complicado na balança de pagamentos, um deficit crescente, uma taxa de juros elevada e uma taxa de câmbio cruel.


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