São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2010

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ELIO GASPARI

O WikiLeaks lavou a alma do Itamaraty


Não é a diplomacia brasileira que não gosta dos EUA, são os EUA que não gostam de uma diplomacia brasileira

A PAPELADA do WikiLeaks relacionada com o Brasil prestou um serviço à diplomacia nacional. À primeira vista, apresentou o Itamaraty como inimigo dos Estados Unidos. Olhada de perto, documentou que o governo americano é inimigo do Itamaraty.
Como o vazamento capturou mensagens do canal que liga a embaixada americana ao Departamento de Defesa, o ministro Nelson Jobim ficou debaixo de um exagerado holofote. Exagerado, porém veraz. Em janeiro de 2008, Jobim tratou com o então embaixador Clifford Sobel assuntos que não eram de sua competência, dizendo coisas que não devia.
Sobel, um quadro estranho à diplomacia americana, saído do plantel de empresários republicanos com carreiras políticas fracassadas, qualificou-o como um homem decidido a "desafiar a supremacia histórica do Itamaraty em todas as áreas da política externa". Em treze palavras, resumiu o objeto do desejo dos americanos: desafiar a supremacia histórica do Itamaraty em todas as áreas da política externa.
O Itamaraty é um ofidiário. Nele há de tudo, mas poucos foram os casos de diplomatas bem colocados que quisessem terceirizar as relações internacionais do Brasil. Já houve diplomata que ia para o serviço vestindo a camisa verde dos integralistas, assim como houve comunista dos anos 50 que, nos 70, trabalhava de mãos dadas com o Serviço Nacional de Informações.
Sempre há quem divirja das linhas da política externa da ocasião mas, noves fora vinganças burocráticas, a máquina une-se quando se trata de defender "a supremacia histórica do Itamaraty em todas as áreas da política externa".
Essa característica sempre incomodou a diplomacia americana. Pelo poderio e pelo tamanho de sua representação no Brasil, ela busca o fatiamento das "áreas da política externa". É sempre mais fácil negociar assuntos agrícolas com um ministro indicado por um poderoso deputado que um dia voltará a cuidar de seus interesses. Negociar tarifas em foros internacionais com diplomatas influenciando a posição brasileira é um pesadelo para as delegações americana e europeias. (Salvo em casos raros, como quando Brasília determinou ao chefe da delegação que votasse com os americanos.)
Se dependesse das famosas ekipekonômicas, os Estados Unidos teriam quebrado a resistência brasileira à criação da Associação de Livre Comércio das Américas, a Alca, defendida durante os governos Clinton e Bush. Em 2002, o negociador americano disse que, se o Brasil não aderisse à Alca, teria que vender seus produtos na Antártida. O setor mais organizado (e pecuniariamente desinteressado) da oposição à Alca estava no Itamaraty.
Durante o tucanato, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães dizia que negociar um acordo de livre comércio daquele tipo seria o mesmo que discutir um caminho para o patíbulo e foi demitido da direção do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais do ministério.
O que incomoda o Departamento de Estado é uma diplomacia capaz de impedir que sua embaixada negocie no varejo dos ministérios assuntos que envolvem relações internacionais. Se o embaixador Sobel pudesse tratar temas da defesa só com Jobim, seria um prazer. Os diplomatas brasileiros não decidem todas as questões onde se metem, mas atrapalham. Por isso, um embaixador americano queixava-se dos "barbudinhos do Itamaraty".
Poucas vezes os "barbudinhos" apanharam tanto como no caso da resistência brasileira ao golpe de Honduras, no ano passado. Graças ao WikiLeaks, conhece-se agora o telegrama enviado pelo embaixador americano em Tegucigalpa, Hugo Llorens, a Washington, três semanas depois da deposição do presidente Manuel Zelaya: "Na visão da embaixada, os militares, a Corte Suprema e o Congresso armaram um golpe ilegal e inconstitucional contra o Poder Executivo". O texto integral do telegrama é quatro vezes maior que este texto e nele a palavra "golpe" é usada 13 vezes.
O companheiro Obama agasalhou o golpe, Nosso Guia, não.

O ENCARNADO
Lula deve ter achado pouco que seu ministro das Relações Exteriores o chamasse de "Nosso Guia, nosso mentor".
Em fevereiro, sua candidata a presidente promoveu-o a "grande mestre", pois "nos ensinou o caminho".
Na semana passada, Nosso Guia, Mentor e Mestre dispensou intermediações e classificou-se de "encarnação do povo".

ALOPRADOS
O governo Dilma Rousseff nem começou e coleciona uma agenda de disparates.
Durante a campanha a doutora prometeu o controle da carga tributária, a defesa da moralidade e a contenção de gastos. Um pequeno balanço:
1) Três dias depois de sua eleição, perfilhou a ressurreição da CPMF, imposto derrubado pelo Congresso.
2) Na primeira reunião do conselho político de sua base de apoio, a única proposta substantiva apresentada foi a legalização dos bingos.
3) Seu primeiro investimento poderá ser a compra de um Aerodilma, que custa em torno de R$ 500 milhões.

NÓS, QUEM?
Em 2006, o embaixador do Brasil em Washington, Roberto Abdenur, disse que se cultivava em Pindorama uma "visão romântica" da China e que a ideia de formar uma "parceira estratégica" com Beijing podia ser um "conceito enganoso".
Essa fala foi apresentada como um dos motivos para defenestrá-lo do cargo, sem a gentileza de um telefonema do chanceler Celso Amorim.
Passaram-se quatros anos e Amorim sai-se com a seguinte: "Não desenvolvemos um conceito pleno de como vai ser nossa relação com a China. Essa é uma autocrítica. Não deu tempo. Precisamos pensar mais profundamente".
Abdenur devia mandar um e-mail para Amorim: "Nós, quem? Cara pálida".

ANDAR DE CIMA
Em 2001, duas mulheres foram detidas por seguranças de um supermercado Carrefour porque furtaram um protetor solar. Entregaram-nas a Quinha, lugar-tenente do traficante Julinho, de Cidade de Deus. Uma delas foi espancada.
Diante da grita provocada pelo episódio, o cônsul francês procurou o governador Anthony Garotinho e reclamou da falta de segurança na cidade.
Agora descobriu-se um rombo de R$ 1,2 bilhão na contabilidade da rede de supermercados. É ervanário suficiente para comprar 20 milhões de bisnagas do protetor Vichy.
Resta ver se chamarão a polícia. Felizmente, não chamaram o Quinha.

BOLSA MALFEITOR
A diretoria da delegacia de Santos do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal protesta diante do uso da expressão "Bolsa Malfeitor" para qualificar uma iniciativa sua, propondo a criação de um caixa de pecúlio da categoria para socorrer os fiscais demitidos da instituição a bem do serviço público.
A proposta de socorro, informam os sindicalistas, não é para garantir-lhes o pagamento dos salários enquanto tramita o processo judicial. Trata-se de garantir-lhes o numerário, algo como R$ 12 mil mensais, a título de empréstimo.
Como serão os próprios auditores fiscais quem pagarão a conta da bolsa, o problema é deles. A patuleia sonha com a criação de um fundo semelhante, que socorra o contribuinte que tomou uma cobrança administrativa da Receita, perdeu uma liminar, mas seu recurso à Justiça ainda não transitou em julgado.


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