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MINHA HISTÓRIA
JOM TOB AZULAY
Filho pródigo
Um amigo passou em quarto lugar [no Itamaraty] e foi impedido de se matricular por ter sido líder estudantil Eu tinha que ver a lista de pessoas que não podiam ter o passaporte renovado Estava exercendo funções policiais. Eu tinha que sair
RESUMO
Jom Tob Azulay assistiu à caça às bruxas que a ditadura militar
promoveu no Itamaraty,
onde entrou em 1965. Testemunhou expurgos e, a
contragosto, foi incumbido de executar a política
do regime nos postos em
que serviu. Pediu desligamento em 1976. Após décadas trabalhando como
cineasta, reencontrou-se
com a diplomacia e foi
reintegrado ao Itamaraty.
Rafael Andrade/Folhapress
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O diplomata e cineasta Jom Tob Azulay, que foi reintegrado ao Itamaraty e servirá na Índia
(...)Depoimento a
JULIANA ROCHA
DE BRASÍLIA
Jom Tob Azulay, 69, pertence à geração que entrou
para o corpo diplomático na
ditadura militar, vendo-se na
obrigação de representar um
regime com o qual não se
identificava. Desde o exame
de admissão até deixar o Itamaraty, em 1976, assistiu à
perseguição política no ministério, ao qual acaba de ser
reintegrado pela comissão
da anistia. Servirá na Índia,
como conselheiro, até completar 70 anos, em dezembro,
quando deverá se aposentar.
MENINO DO RIO
Tive uma educação típica
de classe média do Rio de Janeiro, criado em Ipanema,
nos anos 50. Não me envolvi
com atividades estudantis na
faculdade. Eu era praiano,
frequentava os pontos de encontro da bossa nova.
Comecei a namorar uma
dinamarquesa sete anos
mais velha, que me deu uma
visão de vida europeia. Me
ensinou a falar francês e inglês, a me vestir, a ter certa
sofisticação. Eu não sabia o
que fazer e o Itamaraty era
uma opção interessante.
EXAME IDEOLÓGICO
Comecei a estudar para ser
diplomata em 1963, no auge
do predomínio do pensamento de esquerda. Minha
formação foi dentro da visão
crítica da realidade do país.
Prestei o exame no ano seguinte ao golpe e não sabia
como adaptar tudo o que tinha estudado à nova realidade. Sabia que a prova do Rio
Branco era ideológica. Certas
palavras não se podia usar,
como conscientização, que
era considerado neologismo.
A minha primeira frustração foi quando um dos meus
grandes amigos passou em
quarto lugar e foi impedido
de se matricular por ter sido
líder estudantil.
CAÇA ÀS BRUXAS
Teve uma caça às bruxas
no Itamaraty. Eu participava
das passeatas. A gente formava grupos, discuta a realidade. A incompatibilidade
com o regime era percebida.
Em 1969, se institui a Comissão Câmara Canto, que
ceifou 40 diplomatas. Quando fui convocado por ela,
pensei que minha vida tinha
acabado. Me sentia culpado
em relação àquele regime.
Fui recebido por três embaixadores que me perguntaram se eu conhecia algum
homossexual, comunista ou
alcoólatra. Disse que não.
Concordar em responder já é
uma vergonha. Escapei, mas
aquilo me afetou.
A única coisa digna que se
deveria fazer é dizer que isso
não é pergunta que se faça, e
que eu não vou responder a
nada que seja insultuoso.
Mas se eu desse essa resposta, estava liquidado. Aquilo
era uma comissão de delação, o que mostra que a instituição estava envenenada.
OS CORREDORES
Em 1969, a postura dos militares com o Itamaraty mudou porque souberam que
estavam mandando informações e denúncias de tortura
pela mala diplomática para a
Anistia Internacional.
Havia um clima de repressão enraizado através das
DSIs (Divisão de Segurança
de Informações). Tinha um
representante do DSI na Secretaria-Geral do Itamaraty.
O coronel Paiva Chaves tinha um gabinete. Tudo passava por ele. O Itamaraty foi
humilhado, sua autoridade
foi quebrada. O pior, a gente
via os oficiais pelos corredores. Um dia, ouvi: "Não vamos torturar um diplomata".
A SAÍDA
Em Los Angeles, conheci
os realizadores do filme "Brazil: A Report on Torture"
-documentário com depoimentos e simulações de tortura (1971). Eu vi que estava
diante de algo perturbador.
Sempre que podia, eu passava esse filme para amigos.
Uma vez, passei na casa do
músico Oscar Castro Neves,
onde estavam Tom Jobim,
Elis Regina e mais uns 40
brasileiros. As senhoras gritavam: "O que é isso?".
Na época, eu trabalhava
no setor consular de Los Angeles, onde tinha que ver a
lista de pessoas que não podiam ter o passaporte renovado, receber visto ou apoio
e deviam ter a presença denunciada. Estava exercendo
funções policiais. Aí eu percebi que tinha que sair.
Tinha crises por ser obrigado a não renovar passaporte,
como o do professor Alberto
Guerreiro Ramos. Então, pedi para sair em 1976. Fiquei
quieto no meu canto. Por isso
nunca fui preso.
Fui me dedicar à atividade
que me permitia um mínimo
de oxigenação: o cinema.
Nesses 35 anos fora do Itamaraty, fui produtor, fotógrafo e
roteirista. Foram três longas:
"Os Doces Bárbaros", de
1978, "Corações a Mil", de
1983, e "O Judeu", de 1995,
além do documentário "Caminhos da Diplomacia Brasileira", de 1996.
A ANISTIA
Em 2001, fui trabalhar na
Ancine [Agência Nacional do
Cinema]. Lá fiz diplomacia
como nunca. Fiz um acordo
Brasil-Alemanha, que reacendeu a alma do diplomata.
Em 2007, o [embaixador]
Jerônimo Moscardo perguntou porque eu não voltava
para o Itamaraty. Argumentou que saímos porque havia
um clima de perseguição.
Entrei na Comissão da
Anistia, onde três colegas,
entre eles o ex-ministro da
Defesa José Viegas, depuseram a meu favor. A volta representa o exorcismo de tudo
isso. Disse na comissão que
não havia como continuar.
Eu não podia conviver com
aquilo. No meu julgamento,
passou trechos de "Brazil: A
Report on Torture". Em quase 40 anos de existência do
filme, foi a primeira vez que
foi exibido no país.
É indescritível que o brasileiro tenha sido aquilo, tenha
submetido seus filhos àquilo.
Isso nunca passou porque as
sociedades reprimem no seu
inconsciente aquilo de que se
envergonham.
Agora que fui reintegrado,
vou para a Índia até dezembro, quando faço 70 anos e
me aposento.
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