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OPINIÃO
A quebra do sigilo fiscal e o Estado totalitário
RICARDO CALDAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
"(...) Confessavam assim
que havia sido consumada a
transformação do Estado de
instrumento da lei em instrumento da nação; a nação havia conquistado o Estado, e o
interesse nacional chegou a
ter prioridade sobre a lei muito antes da afirmação de
[Adolf] Hitler de que "o direito
é aquilo que é bom para o povo alemão".
(...) Mas, como a sua criação [do Estado-nação] coincidia com a de governos constitucionais, os Estados-nações
sempre haviam representado
o domínio da lei, e nele se baseavam, em contraste com o
domínio da burocracia administrativa e do despotismo
-ambos arbitrários.
De modo que, ao se romper o precário equilíbrio entre a nação e o Estado, entre o
interesse nacional e as instituições legais, ocorreu com
espantosa rapidez a desintegração dessa forma de governo e de organização espontânea de povos."
(Trechos do livro "As Origens do Totalitarismo", página 308, de Hannah Arendt).
Na passagem acima, Hannah Arendt nos mostra como
ocorre o processo de transformação do Estado de Direito em despotismo.
Ainda que na Europa a ascensão do totalitarismo tenha se dado em um contexto
de perseguição às minorias
nacionais, a forma como o
Estado de Direito entra em
declínio é sempre a mesma:
as normas perdem o valor, os
dirigentes do Estado se sentem à vontade para quebrá-las e a burocracia administrativa reina desimpedida, ao
lado do despotismo.
Assim, o que caracterizava
o totalitarismo para Arendt
era não apenas a banalização
do terror mas também a forma como o regime totalitário
interfere e invade a vida individual de cada cidadão, que
caberia ao Estado justamente
proteger.
Com efeito, entre as características do Estado de Direito estão, "inter alia", o fato de
todos, inclusive o próprio Estado, estarem submetidos às
mesmas normas.
A essência do Estado de
Direito é o respeito às normas
e o respeito aos direitos fundamentais. Estes são direitos
subjetivos que existem por
parte do indivíduo perante o
Estado, mas que nem por isso
deixam de ter um claro conteúdo (direto) na relação Estado-cidadão.
No caso do Brasil, sigilo
fiscal está associado a direito
à privacidade, previsto na
Constituição Federal de 1988
(título 2º, artigo 5º, inciso 10).
A quebra de sigilo fiscal representa, portanto, uma quebra de um princípio constitucional. Dito de outra forma, o
Estado, ao quebrar o sigilo
fiscal de um de seus cidadãos, abandona sua característica de garantidor de direitos e se torna um Estado
usurpador.
Esse fato -a quebra do sigilo fiscal- é um aviso de
que o Estado democrático de
Direito está em crise e de que
um Estado totalitário se aproxima.
RICARDO CALDAS, professor de ciência
política, é diretor do Centro de Estudos
Avançados Multidisciplinares da UnB
(Universidade de Brasília).
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