São Paulo, Sábado, 08 de Janeiro de 2000


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Tagarelices de Gadda


Contos fazem a vida pulsar em "Casamentos Bem Arranjados"


MARCELO COELHO

"Casamentos Bem Arranjados" é o quarto livro de Carlo Emilio Gadda (1893-1973) traduzido no Brasil, depois de "Aquela Confusão Louca da Via Merulana" (Record), "O Conhecimento da Dor" (Rocco) e "A Adalgisa. Quadros Milaneses" (Rocco). Foi "A Adalgisa" que me revelou o virtuosismo e o encanto deste que é um dos maiores escritores italianos do século. Seu humor imitativo e paródico, o uso genial das notas de rodapé, da impertinência erudita e do capricho digressivo, aparecem ali de forma irresistível.
Mais famosos, porém, são "O Conhecimento da Dor", livro de tom mais melancólico e autobiográfico, e "Aquela Confusão Louca da Via Merulana", falso policial que, provavelmente, foi o que mais contribuiu para o reconhecimento do autor. Confesso que não me pareceu tão interessante.
Esta avaliação é suspeita. Para um não-italiano, incapaz de julgar o mérito relativo das traduções, e certamente pouco à vontade para reconhecer os constantes pastiches que Gadda apresenta de autores como Manzoni e d'Annunzio, a experiência literária com sua obra há de ser necessariamente incompleta.
Há um debate, aliás, sobre a "intraduzibilidade" de Gadda. Aurora Bernardini e Homero de Freitas Andrade -tradutores também de "Aquela Confusão Louca na Via Merulana"- dizem na introdução ao livro que não foi possível recuperar "o efeito do uso dos dialetos. O texto perdeu em sutileza de caracterização e "coquetterie" metalinguística (embora, quem sabe, tenha ganhado em inteligibilidade) e, o que é mais grave, justamente na expressão do pólo primordial, visto ser o dialeto o veículo privilegiado por Gadda para representar a vulgaridade da vida em sua verdade mais visceral".
A questão do que é "traduzível" em Gadda reaparece em "Casamentos Bem Arranjados", em que Bernardini e Andrade escrevem uma introdução mais confiante: apontam a "mi(s)tificação que se foi criando em torno do uso que o escritor faz dos dialetos: algo considerado quase intransponível por certa crítica menos avisada. Sabe-se hoje que essa quase "intransponibilidade" da linguagem gaddiana é justamente sua dimensão literária universal."
O argumento, do ponto de vista lógico, não é dos mais convincentes -pois a dimensão universal da "intransponibilidade" pode tornar uma obra muito "universal", mas nada "transponível". Aceitemos, entretanto, o que se perde nas traduções de Gadda. O que resta é maravilhoso.
Se defendo "A Adalgisa" como melhor introdução à obra de Gadda, faço uma ressalva, entretanto, que remete a esta coleção de contos escritos entre 1924 e 1958, reunida pelo próprio autor sob o nome de "Casamentos Bem Arranjados". Trata-se de "O Incêndio na Rua Kepler", conto de dez páginas.

Narração rutilante
Nesse incidente do qual todo mundo, ou quase, sai vivo, tudo é vulgaríssimo, circunstancial, jornalístico, paupérrimo. Mas o incêndio na rua Kepler é narrado numa agitação efusiva e rutilante. Cito um trecho:
"Incêndio, disseram todos mais tarde, é uma das coisas mais terríveis que existe. E é verdade; entre a generosidade e a perplexidade dos bombeiros de ouro: entre cataratas de água potável por cima das camas turcas mijadas e verdes, mas agora ameaçadas por um vermelho horroroso, e, por cima dos sifões de aquecimento e dos guarda-comidas, guardiães de quem sabe um naco de gorgonzola suado, mas já lambidos pela chama como o veado pela cobra: com jorros, jatos líquidos, pelas serpentes túrgidas e molhadas das mangueiras de cânhamo, e longas, lancinantes zagaias pelos hidrantes de latão, que terminam em brancas madeixas e nuvem no céu de tórrido agosto: e isoladores de porcelana semicalcinados despencando aos pedaços para se espatifarem de vez na calçada...".
Paro por aqui, mas Gadda é incapaz de parar: cada objeto, cada personagem, está pronto a provocar uma verborragia nesse autor. No conto sobre o incêndio da rua Kepler, ele dedica mais de uma página à biografia do papagaio que é salvo na última hora.
O que se passa, nesse interesse absurdo pelas coisas secundárias? O que mobiliza o autor, quando delira sobre a história romana, sobre o assassinato de César, num conto que narra (banalmente) a iniciação sexual de um rapazinho ("São Jorge em Casa Brocchi")?

Casamentos Bem Arranjados
Carlo Emilio Gadda
Tradução: Aurora Bernardini e Homero Freitas de Andrade
Nova Alexandria/ Instituto Italiano di Cultura (Tel. 0/xx/11/5715637)
232 págs., R$ 23,00



Acho que Gadda reconhece, na literatura modernista, o que ela tem de terno e popular. Remeto o leitor aos dois melhores capítulos do "Ulisses" de James Joyce: aquele em que aparece a menina manca e coquete, sonhando, à beira-mar, com fitas e adereços que neguem sua deficiência. E aquele outro, o penúltimo, feito de forma didática, em forma de questionário: a imbecilidade das perguntas e respostas, sua "idiotia objetiva", para falar como Nelson Rodrigues, adquire uma grandeza que faz de Joyce o artista que ele é.
É a mesma simpatia pela estupidez que faz de Gadda o artista que ele é. Uma ternura estranha mobiliza esse escritor que é moderníssimo. Moderníssimo pela liberdade com que imita o vocabulário do passado (Manzoni, D'Annunzio); moderníssimo pela ironia; mas muito pouco moderno pelo carinho, pelo que tem de aberto à imbecilidade humana. Enquanto Flaubert registra friamente a estupidez, Gadda registra-a no mimetismo da fofoca, do linguajar geral, de uma "vox populi" em que vibram, ao mesmo tempo, a crítica e a esperança.
Sem dúvida, não é a toda estupidez que Gadda se mostra complacente. Seu antifascismo radical, que o levava a nem sequer citar o nome de Mussolini, mantém milagrosamente, contudo, o bom-humor. Eis um trecho de crítica terrível ao militarismo fascista, escrito com uma espécie de senso da fantasia, de prazer estilístico:
"... o Primeiro Marechal da Itália, gênio político e militar sem desmerecer o resto, decretara que se devia chegar a Atenas em cinco dias: (...) era preciso, ordem do "duce", avançar quarenta e oito quilômetros por dia, "com sapatos, ou sem sapatos". (...) Mas não havia sapatos para atravessar o Epiro, nem meias, e isso em obediência a um dos mais sublimes decretos do próprio gênio, político e militar, a saber: "O espírito vence a matéria." Os sapatos de papelão dos (soldados) alpinos eram a matéria, assim como seus pés congelados, que um cirurgião, em Brindisi, apressava-se em cortar da respectiva perna: primeiro um, depois o outro".


Explicações impertinentes
No apêndice, se podemos dizer assim, desse parágrafo violentíssimo, encontra-se a arte de Gadda: a frase, absolutamente dispensável, "primeiro um, depois o outro". A "desnecessidade" dessa explicação mimetiza um pouco a burrice geral, mas também corresponde a um capricho descritivo, a um detalhismo que talvez seja, nesse autor, o apanágio da literatura.
Os textos de Gadda estão cheios de explicações totalmente impertinentes. Um parágrafo sem nenhum sentido esclarece, por exemplo, que um tal Zavattari, "sócio da firma Carabellese Pasquale, à rua Ciro Menotti, 23, administrava (...) um negócio de peixe atlântico barato da Genepesca, pescado com os moto-pesqueiros "Stefeno Canzio", "Gualconda", e, de vez em quando, o "Doralinda'".
Nada disso interessa à narrativa, exceto por duas coisas. Em primeiro lugar, ironiza-se o naturalismo literário, ou o jornalismo, por meio de seus próprios recursos: o detalhe confere credibilidade ao texto, mas justamente é a credibilidade o que é posto em questão pelo autor. Em segundo lugar, a impertinência corresponde à espécie de "hipersensibilidade auditiva", que Gadda tem em comum com Flaubert: uma vontade de reproduzir o que, na fala popular, é tagarelice, rumor, enumeração caótica, pulsação de vida irracional. Mas, enquanto Flaubert se irrita, e o uso do itálico em seus textos visa a demarcar a distância que toma em relação às frases feitas, às "idées reçues", Gadda abraça a loucura dos homens num delírio literário que não exclui o delírio de que é feita a própria literatura: seja a de Flaubert, seja a de Suetônio, seja a de Manzoni: tagarelices, talvez, diante do horror do mundo; tagarelices, entretanto, que contribuem para a fraternidade do gênero humano, apesar das traduções.
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Marcelo Coelho é ensaísta e romancista, autor de "Jantando com Melvin" (Imago). É colunista e membro do Conselho Editorial da Folha.


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