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A correspondência entre os autores de "Perto do Coração Selvagem"
e "O Encontro Marcado" é analisada pelo sociólogo Sergio Miceli
A educação sentimental de Clarice e Fernando
SERGIO MICELI
Clarice Lispector (1920-1977) e Fernando Sabino (1923) pertencem à mesma geração literária e se conheceram
por meio do atuante círculo de intelectuais católicos no Rio de Janeiro. Embora tenham sido socializados no ambiente cultural carioca na mesma época, tudo o mais em suas experiências de
vida, até a mocidade, prenunciava modos distintos de encarar a criação artística. Mas os caminhos profissionais se
cruzaram no final dos anos de 1950,
quando passaram a depender dos ganhos auferidos na imprensa por suas
crônicas e entrevistas.
Educado numa família católica, mantida pelos encargos de representação
comercial exercidos pelo pai, o jovem
Fernando colaborava no jornal "O Diário", lançado em 1935 pela arquidiocese de Belo Horizonte, no qual também
contribuíam outros moços cristãos intelectuais, que se tornariam amigos íntimos, parceiros de afeição e trabalho:
Helio Pellegrino, filho do diretor do
Hospital Militar; Otto Lara Resende,
que começou como docente no colégio
fundado pelo pai na capital, o professor
e empresário educacional Antonio de
Lara Resende, da diretoria de "O Diário"; Paulo Mendes Campos, ex-aluno
interno de salesianos e franciscanos, filho de um médico atuante na zona da
mata mineira no apogeu do café.
Clarice provinha de modestíssima família de imigrantes judeus russos. Os
pais e as três filhas se instalaram no começo junto aos parentes aqui residentes, uns tempos em Maceió (1921-24),
depois firmando residência em Recife
(1924-33), no bairro da Boa Vista, que
congregava a pequena, mas integrada,
comunidade israelita na cidade. Seu
pai tirava da atividade de mascate o
amparo da família e da mulher doente,
acometida por uma paralisia progressiva que a tornou inválida, dependente
dos préstimos das filhas.
Clarice perdeu a mãe ainda menina
(1930) e o pai, dez anos mais tarde,
quando a família já se havia mudado
para o Rio de Janeiro. Ela ingressa na
Faculdade Nacional de Direito em 1939
e retira a subsistência de diversos empregos paralelos aos estudos. O mais
marcante foi o de redatora na Agência
Nacional, de onde é removida para
atuar como repórter no jornal "A Noite", órgãos públicos criados pelo Estado Novo. Nesses lugares, teve a chance
de contatar outros escritores, inclusive
o romancista Lúcio Cardoso. Por seu
intermédio, Clarice se aproxima da inteligência católica, em especial dos prosadores Cornélio Penna, Adonias Filho
e Octavio de Faria. No mesmo ano de
1943, obtém o diploma de bacharel,
lança seu romance de estréia, "Perto do
Coração Selvagem", e se casa com um
colega da faculdade, o diplomata
Maury Gurgel Valente.
Em 1941, Fernando também ingressara na faculdade de direito e estreara
em livro com o volume de contos "Os
Grilos Não Cantam Mais", numa edição custeada pelo pai; três anos depois,
casou-se com Helena, filha do então
governador mineiro Benedito Valadares. O envio do livro a Mário de Andrade ensejou um relacionamento de tutoria, pautado pelos sabões do mestre
experiente e pelo entusiasmo do novato diante da receptividade aos seus escritos, o que confirma a curiosa correspondência entre eles.O matrimônio lhe
trouxe a nomeação ao primeiro de
uma série de postos conquistados por
apadrinhamento político.
Clarice e Fernando
Clarice residiu na Europa (Nápoles/
Berna/Londres/1944-52) e em Washington (1952-9), em companhia do marido
diplomata e dos filhos. Sabino viajou com
a mulher para Nova York (1946-8), onde
trabalhou como funcionário no escritório comercial e no consulado brasileiro;
de regresso ao Rio, manteve-se no serviço
público até 1957.
Tais circunstâncias de vivência no exterior, quando estavam tentando constituir
família e, isolados, enfrentando o que
sentiam como um cotidiano massacrante
em terra estrangeira, devem ter motivado
a urgência de uma troca regular de impressões, textos e ajudas, calibrada pela
afetividade e admiração intelectual recíproca. O período provocativo dessa correspondência coincidiu com a feitura dos
romances "O Lustre" (1946) e "A Cidade
Sitiada" (1949) e com o florescimento ficcional dos episódios de "O Encontro
Marcado".
Fé, letras e política
Lúcio Cardoso foi figura-chave na formação literária de Clarice e Fernando. Já
em carta ao jovem Sabino, em 1942, Mário de Andrade rastreia o forte componente católico no seu ideário e, logo mais,
identifica Lúcio, Cornélio e a "entourage"
de Otávio de Faria, divulgadores de uma
postura espiritualista das profundezas,
como uma influência deletéria para a nova geração de prosadores.
As cartas trocadas nessa época comprovam o fascínio exercido por Lúcio, o
qual sugeriu o título adotado por Clarice
no romance de estréia. Ela alimentou um
bocado de fantasias a respeito do sujeito
misterioso e esquivo que era Lúcio, mas
essa paixão nem tão recolhida acabou em
confidência e coleguismo. O agradecimento de Fernando pelo envio do livro
de Clarice, acolhendo pedido de Lúcio,
deu início à amizade tão bem talhada na
correspondência.
Nas cartas aos amigos, Sabino explicita
suas reservas à subserviência da inteligência católica aos ditames de Alceu
Amoroso Lima, a quem nomeia "líder
das sacristias", sem largar mão de investidas na área e alusões reticentes aos intelectuais comunistas. Ao guardar distância do proselitismo de escritores confessionais, como Octavio de Faria e Lúcio
Cardoso, procura, como antigetulista
convicto, se manter afastado da esquerda
e acessível aos acenos da direita: visita
monges beneditinos; fica de olho na Editora Agir, sob chancela de Alceu; participa da criação do semanário católico de letras "Dom Casmurro"; faz conferência
sobre Mário de Andrade no centro D. Vital.
Por conseguinte, embora tenham se
aproximado no começo de suas carreiras
de escritor, Clarice e Fernando pertenciam a ambientes sociais radicalmente
diferentes, sobretudo no que se refere à
proximidade da vida intelectual. Fernando logo cedo conseguiu publicar contos
em revistas e jornais da província; Clarice
só veio a divulgar os primeiros textos
com ajuda dos colegas letrados no serviço público. Fernando e os amigos intelectuais pertenciam a famílias cultivadas,
cujos chefes possuíam diplomas de bacharel; Clarice fez de seu projeto criativo
o escape ousado a um destino convencional.
A mais substantiva diferença entre ambos, em especial no tocante à criatividade
literária, era uma questão de gênero. O
principal assunto de Clarice era ela mesma, sua experiência de vida como menina e mocinha numa família de imigrantes, a aprendizagem penosa dos óbices
que se interpunham a seus anseios criativos. Para se entender a natureza dos respectivos projetos literários, basta confrontar dois de seus romances -"Perto
do Coração Selvagem" (1943) e "O Encontro Marcado" (1956)-, exercícios
contrastantes de uma "educação sentimental".
O aprendizado masculino
As cartas recém-publicadas de Sabino
giram em torno de reminiscências da infância e mocidade, numa evocação de
porres, armações, transas, repletas de
achegas à reinvenção ficcional das estrepolias do jovem que passara a noite de
núpcias no Palácio da Liberdade, então
residência do sogro. "O Encontro Marcado" acolhe diversos procedimentos mobilizados pelo feitio romanesco revigorado no modelo flaubertiano. A exemplo
do que sucede no romance francês, centrado nas histórias paralelas de adolescentes de condições sociais contíguas e
diversas, o sucedâneo nativo relata as
aventuras de jovens da alta classe média
mineira, que perambulam por bares, redações de jornais, praças, puteiros, numa
Belo Horizonte acanhada, naquela muda
transicional, antes de cair nas amarras da
vida adulta.
Trata-se de uma trama nucleada no
processo de envelhecimento social de
personagens adolescentes - inspirados
nos amigos do peito-, os quais se mostram tanto mais envolventes e propensos
a suscitar a índole projetiva do leitor
quanto mais parecem estar imersos numa atmosfera de insanável indeterminação. Enquanto os companheiros vão, aos
trancos, modelando seus itinerários de
vida afetiva e profissional, o herói, Eduardo Marciano, cumpre uma escalada que,
ao fim, se revela um tanto frustrante, como que o obrigando a retornar, já veterano, deprimido, decepcionado, à meta de
partida, a de se tornar escritor.
Ao tematizar constrições difusas e
"universais" de gênero e idade, os avanços do enredo se escoram no embate entre o alter ego do autor -moço promissor com vocação literária, acadêmico de
direito, namorado de garota bacana- e
seus amigos, um deles engajado na militância clandestina de esquerda, adiante
enquadrado como médico e pai de família, outro como mestre-escola, rodeado
de discípulos. O herói é o alvo privilegiado dessa única possibilidade de se "viver
todas as vidas" pela leitura ou pela escrita, como dizia Flaubert: ambicioso e ingênuo, apaixonado e sacana, desprendido e
interesseiro, Eduardo gostaria de poder
agarrar o mundo com as mãos.
Outro ingrediente indispensável ao gênero "educação sentimental" consiste no
roteiro apimentado de situações e parcerias amorosas, desde as escapadas com
moças de condição social inferior ("empregadas" e "mulatas"), passando pelas
experiências homossexuais (a que se
vêem expostos heróis tão atraentes e ambivalentes como o flaubertiano Frédéric
Moreau, na leitura de Sartre, ou nosso
Eduardo Marciano), até as escapadas
(pela ordem) com mocinha tentadora,
piranha e viúva de amigo.
Tudo se passa como se a potência de
seus pendores para a escrita tivesse se esvaído após o casamento com a filha de
um ministro de Estado. Daí em frente, já
morando na capital federal, numa roda
de amigos ligados à atividade cultural,
Eduardo vai desistindo de seus vínculos e
intentos, alcoolizado, na busca sôfrega de
namoradas avulsas para saciar o fastio da
relação conjugal. O filho abortado e a separação apressam os lances de uma tomada de consciência, por parte desse
protótipo de toda uma geração intelectual, prensada entre as colaborações
prestigiosas na imprensa e as mordomias
garantidas pelo emprego público. Eis a
educação sentimental de um escritor brasileiro, ou melhor, a reconversão de um
ex-nadador, talentoso, bonito e tumultuado, cujo único ponto de fixação na vida é o emprego público arranjado pelo
sogro político.
O tal "encontro marcado" do início do
livro, que ele combinara com os colegas,
redunda num acerto de contas pessoal, já
homem feito, amparado pelo socorro
institucional e religioso. Eduardo fracassara como intelectual, marido, amante;
agora, ao cabo de tantas fossas, quer se redimir peitando o trabalho como escritor
e exonerando-se do emprego público.
Aos ingredientes costumeiros do itinerário de vida e trabalho de gerações sucessivas de intelectuais brasileiros -o
treinamento precoce na imprensa, a estréia auto-financiada em letra de forma, o
casamento para cima, a ida para o Rio de
Janeiro, o envolvimento em rodas literárias e mundanas- , acrescentam-se a
profissão de fé católica, certo indiferentismo político e a lealdade incondicional
à panela de amigos de juventude.
A "mulher da voz"
"Perto do Coração Selvagem" também
configura uma peculiaríssima "educação
sentimental", assinada por uma jovem
prosadora que estreou fazendo sucesso,
de crítica e de público. O momentoso e
inovador assunto do livro era a sua própria experiência, ora reciclada como estofo de um projeto criativo audacioso.
As crônicas de Clarice lidam com certos
episódios que serão remexidos em sequências ficcionais do romance autobiográfico de estréia; em vez de proporcionar lastro à reconstrução de liames entre
vida e obra, o interesse dessa ligação é clarear os flancos expressivos de sua dicção
autoral, ou melhor, as modulações de
uma voz narrativa de mulher. A figura
compreensiva do pai, os banhos de mar, a
lembrança da morte da mãe, a presença
inquietante da tia, os bichos são materiais
de vivência remanejados em chave falseada, que lhe facultam exprimir o linguajar
quase indizível de uma moça empenhada
em se fazer ouvir com todas as idiossincrasias de sua condição feminina.
O livro se desdobra em dois tempos: no
primeiro, as andanças, os devaneios e as
impressões de Joana menina, meio apartada, meio colada ao universo do pai; no
segundo, já casada, em rota de colisão
com seus próprios enguiços, tensionada
pelos resmungos e afazeres do marido,
tendo de se haver com outras figuras de
mulher, por cujos enroscos revela simpatia, inveja e identidade.
Na primeira metade, Joana empreende
sua aprendizagem afetiva ao lidar com
forças masculinas, que despertam nela
pulsões eróticas e desarranjos corporais
arrepiantes. Na sequência, Joana como
que retalha os quinhões de um destino
intemporal de mulher em sucessivas encarnações, correspondentes às etapas do
ciclo de vida: ela mesma fazendo as vezes
de noiva, logo de mulher casada; Lídia,
amante do marido, grávida; a gostosona
esposa do professor; a ressequida "mulher da voz", viúva com um filho, descartada do jogo amoroso, prenúncio do que
sucederia com Joana e, assim, com todas
as mulheres; a prima Isabel, solteirona; a
companheira do seu amante; a velha; e
mesmo a cachorra prenha, que a comove
pela continuidade de função vital exercida no mundo. Mesmo em relação às mulheres que lhe provocam repulsa, Joana
não consegue reprimir o que têm de "secreto e mau em comum".
Essa paulatina conscientização de Joana se faz por sensações que dão fissura e
energia ao corpo. O impulso sensual vai
compondo uma poética descompassada,
de mistura com uma reflexão sentida,
travada, que não abdica sequer dos obstáculos postos diante da construção ficcional. O conhecimento enunciado pela
narradora está invariavelmente agarrado
à sensação que se inscreve numa memória corporal, transcrita de chofre em instantes de vida, fugazes, tão cheios de sentidos a ponto de quase sufocar a personagem.
Joana vai sendo plasmada em meio ao
convívio com os próximos e os estranhos, nas refregas do dia-a-dia, que a fazem apreender e incorporar os papéis assumidos pelas mulheres, e cujos registros
perceptivos afloram na linguagem, em
conceitos, divisões e classificações por
gênero ("verde é homem, branco é mulher, encarnado pode ser filho ou filha
(...)"Nunca" é homem ou mulher? Por que
"nunca" não é filho nem filha?").
A modelagem de Joana se efetua em
torno do corpo, pelo despertar dos sentidos, pela erotização, pelos emblemas (bigode etc.), pelos termos de parentesco,
pelo contraste de forças na parelha, pela
guerra amorosa e conjugal, pelo afogueamento causado pelos transtornos da natureza, como se todos os elementos do
universo pudessem incendiar o desejo.
Registro sexuado
Uma das cenas mais atordoantes é a
masturbação de Joana no banho, em cujo
ambiente o leitor busca se orientar pelas
pistas de embaçamento no cômodo.
Após alguns gestos de alongamento, Joana alastra a faísca pelo corpo, num registro sexuado que nenhum homem saberia
macaquear ou descrever. Adiante, o tesão
de Joana por Otávio reitera o registro sensível desse estonteamento que passa da
cabeça para as veias. Esboçadas da ótica
de quem se sente entregue, atada, trespassada, as imagens de cópula dariam fecho a essa aprendizagem da verdadeira
"mulher da voz" autoral que viria a ser
Clarice. O livro se encerra com a mesma
imagem do início, o barulho da máquina
de escrever do pai, agora posse de Joana
para aquele dia "em que todo meu movimento será criação".
Fernando Sabino se saiu bem no trabalho caprichado de editar os volumes de
cartas, ao fornecer ao leitor informações
oportunas acerca de personagens, acontecimentos, autoria de versos, na justa
medida e sem sobrecarga de aparato crítico ornamental. Já o volume "Correspondências" se destina a iniciados. Além
de não se atinar quanto aos critérios adotados na seleção de cartas e missivistas,
afora o fato de sua disponibilidade, o leitor fica à mercê para suprir as lacunas gritantes de esclarecimento sobre pessoas e
assuntos os mais comezinhos.
Cartas Perto do Coração
Fernando Sabino/ Clarice Lispector
Record (Tel.0/xx/21/2585-2000)
224 págs., R$ 20,00
Cartas na Mesa
Fernando Sabino
Record (Tel.0/xx/21/2585-2000)
320 págs., R$ 35,00
Correspondências
Clarice Lispector
Teresa Monteiro (org.)
Rocco (Tel.0/xx/21/2507-2000)
336 págs., R$ 37,00
Sergio Miceli é professor titular de sociologia na
USP e autor, entre outros livros, de "Intelectuais à
Brasileira" (Cia. das Letras).
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