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Uma referência obrigatória nos estudos de Marx
Objeções ao marxismo
JORGE GRESPAN
Pelo título, o mais recente livro de Ruy
Fausto deve ser entendido como continuação do projeto delineado nos anos
1980, quando foram publicados os dois
primeiros volumes de "Marx: Lógica e
Política". Com toda justiça, aqueles livros
tornaram-se referência obrigatória no estudo do marxismo, dado o extraordinário rigor e a profundidade da análise a
que submetiam os textos de Marx, ao
mesmo tempo em que abriam um importante diálogo crítico com seus principais comentadores.
Esse terceiro volume compartilha certamente com os anteriores as qualidades
e a relevância. E se o autor revela agora
um certo desconforto com o título, que
"tem o efeito de "marxizar" o texto mais
do que gostaria", isto de modo algum
quer dizer que só agora ele tenha decidido enveredar por uma dimensão crítica.
A seriedade intelectual de Ruy Fausto o
colocou sempre a salvo de modismos
neoliberais, mesmo no tempo em que o
neoliberalismo não estava, como hoje, ultrapassado. Não se trata, portanto, de
conversão, muito menos de abandono.
De fato, já na introdução geral do projeto, escrita em 1981, constata-se a preocupação de proceder simultaneamente a
uma análise e a uma crítica da obra de
Marx. Lá esboçavam-se alguns elementos
dessa crítica, que se desenvolveriam aos
poucos junto com a obra.
O problema, então, passa a ser: o que
quer dizer "crítica"? Para fazer jus ao rigor das análises de Ruy Fausto, não podemos simplesmente tomar esta palavra em
seu uso corriqueiro. Devemos tentar definir com alguma precisão os significados
que ela assume nos seus textos.
Em primeiro lugar, ela se dirige a outros comentadores de Marx, como Castoriadis, Poulantzas e Althusser, tendo o
sentido de desacordo e de correção de
seus erros, mesmo reconhecendo serem
eles grandes pensadores. Trata-se apenas
de uma operação destinada a limpar o
terreno para a exposição das próprias
idéias do autor, mas podia ser unilateralmente interpretada como uma defesa de
Marx diante dos críticos ou epígonos. Daí
talvez alguns terem imputado erroneamente a Ruy Fausto uma "ortodoxia"
marxista que ele, aliás, sempre recusou.
Esse equívoco talvez tenha se produzido, por outro lado, pelo teor dos próprios
textos. Inclusive nos que compõem o presente livro, a análise da obra de Marx antes de tudo tem a intenção de esclarecer,
de explicar minuciosamente por meio de
verdadeiras exegeses. Mas se enganam os
que não encontram aqui a crítica. Ela
aparece também, só que funcionando como um recurso pelo qual o autor distingue sua posição da que é analisada. Ou
seja, a análise não se compromete de antemão com a verdade de seu objeto, admitindo até a possibilidade de ele ser falso, para poder, de fora, dissecá-lo com
mais eficiência. A explicitação é muito
maior, com isso, revelando as descontinuidades do objeto, em vez de forçar uma
coerência por vezes inexistente.
É o que acontece, por exemplo, no segundo capítulo do livro, dividido de acordo com as três concepções diferentes de
história e temporalidade que se encontram em Marx, em correspondência com
os três distintos momentos da elaboração
de sua teoria: o "Manifesto Comunista" e
a "Ideologia Alemã", inicialmente; a seguir, os "Grundrisse" e "O Capital"; e, "da
capo", os "Manuscritos de 1844". Em vez
de passar por alto as diferenças, para afirmar uma visão unitária da história por
Marx, o autor, ao contrário, as expõe criticamente.
Concepções do tempo
Na mesma direção vai o capítulo 3, que
trata da relação do marxismo com as
perspectivas historicista e anti-historicista, mais ou menos nos moldes em que havia sido abordado o problema do humanismo e do anti-humanismo no primeiro
volume, de 1983. A perspectiva, digamos,
"externa", em que o coloca a crítica, permite verificar a situação especial de Marx
-mas não de todos os marxistas- diante de tal polaridade, que retoma o problema das diversas concepções do tempo.
Este é o sentido principal dos quatro capítulos do presente volume de "Marx:
Lógica e Política". Vale para ele o que o
autor havia dito na introdução ao livro
inicial do projeto: ele "fica, em geral, no
primeiro momento", o da análise, que se
articula criticamente.
O que diferencia o presente livro dos
anteriores é que nele começa a se realizar
a intenção de uma crítica mais ambiciosa,
correspondente a uma terceira definição.
Numa longa introdução, aparentemente
prevista desde 1981, Ruy Fausto apresenta mais abertamente suas objeções à capacidade explicativa da teoria que investiga. Em alguns pontos, elas se ligam a temas desenvolvidos nas análises detalhadas que formam os capítulos subsequentes. É o caso das questões envolvendo a
história e o tempo, por exemplo.
Caracterizando o capitalismo por ser
progressivo do ponto de vista técnico e
das liberdades jurídicas e, contraditoriamente, regressivo, pela exploração do
trabalho levada ao extremo, o autor ainda
mostra uma dimensão progressivo-regressiva em que ambos movimentos se
determinam dialeticamente.
Também é interessante o tratamento
dado à passagem de um modo de produção a outro, marcado por descontinuidades temporais e modais. E isso é importante por incluir o problema da transição
do capitalismo ao comunismo, relacionado a uma discussão decisiva feita depois no capítulo 1, sobre a famosa passagem dos "Grundrisse" que trata de um
estágio posterior ao da "grande indústria". Seria este um elo da transição? Representaria ele uma certa "libertação" da
"subsunção real" imposta ao trabalhador
ou seria um novo tipo de subsunção, chamada por Ruy Fausto de "espiritual"? São
questões absolutamente candentes que,
por si mesmas, já justificariam a relevância do livro.
Nem todas as objeções ao marxismo
expostas nesta introdução, contudo, encontram eco nas análises minuciosas do
atual ou dos anteriores volumes da obra.
Um dos problemas do livro é um descompasso entre o sentido nele frequente
da crítica, vinculada à análise, e este novo
sentido, que justificaria as restrições em
face do marxismo. Haveria, em outras
palavras, um relativo salto entre as microcríticas, realizadas ao longo da obra, e
as macrocríticas programáticas.
Estas últimas ocupam o núcleo da presente introdução. Como na primeira,
Ruy Fausto admite que as transformações por que passou o capitalismo desde
Marx não invalidam em geral a análise
deste sistema feita por ele já no século 19.
Afinal, diz-nos, "o marxismo, essencialmente uma teoria crítica do capitalismo,
suporta bem, em geral, as mutações que
sofreu o sistema". Como os textos integrantes dos três volumes publicados dedicam-se em grande parte a esse aspecto
socioeconômico do marxismo, a crítica
maior não pode se apoiar neles.
A democracia capitalista
Ela se refere a outra ordem de fatos,
com os quais a teoria de Marx seria incapaz de lidar. Trata-se principalmente da
natureza dos totalitarismos de esquerda e
de direita, bem como da democracia capitalista, que os marxistas não puderam
diagnosticar corretamente devido à insistência na dicotomia entre a base econômica e a superestrutura político-jurídico-ideológica.
É preciso novamente deixar claro: o
ponto de vista de que fala e julga Ruy
Fausto não é o desta "democracia capitalista", para ele um todo contraditório, e
sim o do socialismo democrático.
De qualquer maneira, os prometidos
próximos livros do projeto terão ainda
muitos temas a desenvolver e explicar.
Como, por exemplo, a afirmação de que
o nazismo não seria uma variante capitalista, porque nele o capital estaria "neutralizado". Ou também o comentário de
que mesmo o "melhor marxismo" não
apreende bem a complexidade da relação
entre base e superestrutura, pois as esferas mudariam de forma constantemente,
sem a permanência de uma delas determinando as outras.
Mas o que dizer do conceito lukácsiano
de "totalidade concreta", de certo modo
presente também nas concepções da Escola de Frankfurt? Este e outros conceitos
igualmente sofisticados permitiram pensar as novidades do século 20 a partir do
marxismo.
Também é necessário detalhar o modelo exposto das quatro formas político-econômicas, cujo esquematismo deixa de
lado as transformações históricas que levaram ao nazi-fascismo dentro do capitalismo, como a oligopolização e o predomínio do capital financeiro, observáveis
pelo menos desde o começo do século.
Deve-se levar em conta, sem dúvida,
que o referido modelo é exposto numa
introdução. E estas, como os prefácios,
caracterizam-se por uma abordagem
apenas preliminar, muitas vezes simplificada, dos temas. Mas a consideração da
gênese das formas talvez venha a alterar
algumas das conclusões do autor.
Uma coisa, porém, é certa: como afirma
Ruy Fausto, o problema mesmo do "melhor marxismo" é que diante das inéditas
questões propostas pela história recente
não adianta só "restituir toda a riqueza e
rigor do pensamento de Marx" mediante
novas exegeses dos seus textos. Um certo
afastamento da filosofia, entendida como
leitura estrutural, é realmente inevitável,
para poder enfrentar a "história concreta" e desenvolver criativamente as categorias herdadas. Aguardamos impacientemente a sequência da obra.
Marx: Lógica e Política - Tomo 3
Ruy Fausto
Ed. 34 (Tel. 0/xx/11/3816-6777)
320 págs., R$29,00
Jorge Grespan é professor de história na USP e
autor de "O Negativo do Capital" (Hucitec).
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