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Um painel crítico do cinema nacional
Glauber profeta
PAULO CEZAR SARACENI
Paulo Emílio Salles Gomes disse, depois
da morte de Glauber Rocha, que o profeta não tem que acertar as profecias o tempo todo. Glauber era um profeta, Paulo
Emílio sabia. Mas na "Revisão Crítica"
Glauber acerta o tempo todo. É genial demais, a coragem com a qual ele-que
preparava a sua primeira obra-prima,
"Deus e o Diabo na Terra do Sol"- investiga com um rigor crítico insuperável
o painel do cinema brasileiro que iniciava
a grande revolução do cinema novo. Primeiramente examinando os três cineastas de gênio que nos antecederam: Humberto Mauro, Mario Peixoto e Alberto
Cavalcanti.
A trajetória de Humberto Mauro, de
"Cataguazes" ao INC (Instituto Nacional
de Cinema), merece a preferência de
Glauber. E com toda razão -que alegria
imensa termos um pioneiro maior, que
nos ensinou tanto, e que felicidade vermos uma parceria tão grande, como os
soviéticos tiveram com Eisenstein e Prokofiev, e, nós, com Humberto Mauro e
Heitor Villa-Lobos- Glauber percebe
com maestria essa genialidade do grande
artista autor de "Ganga Bruta".
De Mario Peixoto, outro gênio, mas
com um filme só, "Limite", Glauber fica
com certa antipatia natural por não ter
visto o filme ainda naquela época.
Falou apenas do mito de "Limite" e dos
ciúmes de Saulo Pereira de Melo, que não
deixava a gente ver nenhum fotograma
do filme, mas mesmo assim Glauber sacava que não era possível o grande romancista e crítico Octavio de Faria, que
havia feito com Plinio Sussekind o primeiro cineclube do Brasil, e com ele trazido o cinema soviético de Eisenstein, Pudovkin, Dziga Vertov e Dovjenko, elogiar, e como, "Limite".
Mais tarde, nós vimos a cópia restaurada do filme de Mario Peixoto. Era cinema
pelo cinema, sim, mas que cinema! O outro gênio era Alberto Cavalcanti, que encantava tanto a França como a Inglaterra
fazendo grandes obras-primas. Glauber
fala mais da decepção que Cavalcanti teve
ao retornar ao Brasil.
A análise crítica que Glauber faz da
chanchada e da Vera Cruz e de outras
tentativas frustradas e frustrantes que a
indústria cinematográfica paulista fez é
definitiva. Glauber não perdoa nem os filhotes dessa indústria, como Lima Barreto com "O Cangaceiro" e Anselmo Duarte com "O Pagador de Promessas".
Nesta apresentação de "Revisão Crítica", de Glauber Rocha, feita pelo crítico e
estudioso de cinema Ismail Xavier, percebemos como demorou para essa segunda edição sair. A falta dessa crítica de
Glauber deixou por muito tempo o pessoal da crítica numa ignorância total. Ismail Xavier é muito inteligente, mas vendo o meu lado, autor do livro "Por Dentro do Cinema Novo", vemos a tentativa
que Ismail Xavier faz de entender de fora
para dentro aquele momento do cinema
novo. Fica muito difícil, o jovem crítico
chega até a ignorar a belíssima crítica que
Glauber faz dos meus filmes "Arraial do
Cabo" e "Porto das Caixas".
Sem entender a importância de "Porto
das Caixas", não pode citar os geniais filmes que vieram depois, como "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, "Deus
e o Diabo na Terra do Sol", do próprio
Glauber, e "Os Fuzis", de Rui Guerra. Fica
no ar. Não fala da fonte.
Mas Glauber examina com muita sabedoria os filmes pré-cinema novo. Os filmes neo-realistas de Alex Viani, Nelson
Pereira dos Santos, Roberto Santos e Trigueirinho Neto. Falo dos mais importantes. Com uma preferência maior para o
papa do cinema novo, Nelson Pereira dos
Santos, que depois da montagem que fez
de "Barravento", de Glauber Rocha, e da
visão de "Porto das Caixas", mudou inteiramente seus filmes, e com "Vidas Secas" inicia uma trajetória que o vai colocar entre os maiores cineastas da história
do cinema. Glauber anuncia com uma
precisão magnífica o que será o cinema
novo e o cinema do futuro.
À sua profecia vem se juntar a de Gustavo Dalh, realizada no festival de Santha
Marguerita Ligure, na Itália, quando falou para os críticos do mundo inteiro,
que apenas tinham visto "Arraial do Cabo", o que seria o cinema novo.
Com dois profetas assim, bastava fazer
os filmes, o destino estava escrito. Com
que inteligência e maestria Glauber faz a
divisão entre os diretores do cinema novo que visam a fazer filmes comerciais e
os que querem fazer cinema e, com essa
arte, revelar e descobrir o Brasil para os
brasileiros. É mais que emocionante como Glauber fala de Joaquim Pedro de
Andrade e Leon Hirszman e de seus primeiros filmes. Glauber faz até uma divisão na velha divisão de direita versus esquerda, ele renova falando de um cinema
de autor versus cinema comercial, ou seja, um progressista de autor e outro reacionário, isto é, comercial.
Glauber investe com uma coragem
imensa contra os aproveitadores, contra
os industrialistas que querem criar uma
indústria nos moldes de Hollywood, num
Brasil pobre, feito de espectadores de filmes americanos, que desde o início do
século 20 tomaram o nosso imaginário e
nos impuseram um gosto transgênico e
insalubre nesse mesmo imaginário, que
tem uma arte popular toda ela feita de
improvisação, que já aparecia nos pés de
Garrincha o do grande mestre-sala Delegado da Mangueira, o qual, junto com a
flor maior das porta-bandeiras, Wilma
Nascimento, a Wilma da Portela, nos
mostrava o caminho, como os índios brasileiros mostraram o caminho da ternura
para o nosso santo Anchieta.
Nesse momento em que os americanos
e os ingleses querem fazer uma guerra
absurda, em nome de lutarem contra os
terroristas -mentira pura, pois é uma
luta de dominação, uma luta pelo petróleo, uma volta do imperialismo cruel que
pensávamos ter feito desaparecer de vez
da face da terra; nesse momento lembramos do bravo baiano de Vitória da Conquista e pensamos naquela fúria vertiginosa e terna com que Glauber investia
contra os sem fé, empunhando o mesmo
coração aos gritos, como anos depois fez
em Veneza num escândalo jamais visto,
porque os mesmos vendilhões do templo
não acreditavam em sua própria burrice
de premiar o bom Louis Malle com um
péssimo filme comercial contra a obra-prima total que é "A Idade da Terra".
Saudades, Glauber, Buru querido, saudades. Enquanto não entenderem "A
Idade da Terra", vão ficar retomando um
cinema da retomada que desconhecem.
"Revisão Crítica" é apenas um livro genial que anunciava, além de um grande
cineasta, um dos maiores críticos e escritores da língua portuguesa.
Paulo Cezar Saraceni é diretor de cinema. Seu
novo filme, em cartaz, é "Banda de Ipanema".
Revisão Crítica do Cinema Brasileiro
Glauber Rocha
Prefácio de Ismail Xavier
Cosac & Naify (Tel. 0/xx/11/3218-1444)
240 págs, R$ 45,00
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