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São Paulo, sábado, 08 de março de 2003

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Um momento decisivo do teatro brasileiro

A verdade nua

As Noites do Ginásio - Teatro e Tensões Culturais na Corte (1832-1868)
Sílvia Cristina Martins de Souza
Ed. da Unicamp (Tel. 0/xx/19/3788-7783)
329 págs., R$ 27,00

SÁBATO MAGALDI

A primeira virtude de "As Noites do Ginásio" se encontra na quase inacreditável quantidade de fontes arregimentadas.
A autora compulsou 53 jornais diferentes do Rio de Janeiro; anais do Parlamento Brasileiro relativos aos anos de 1846/ 1847 e 1858/ 1859; coleções das leis do Império abrangendo 18 anos; relatórios do Ministério do Império de 1844 a 1873; seis livros de memórias; 35 peças teatrais dos dramaturgos examinados; nove trabalhos de viajantes estrangeiros; romances e crônicas, ações cíveis e inventários; correspondência interna, atas, registros e pareceres da Censura do Conservatório Dramático Brasileiro acerca de 167 peças, além de extensa bibliografia pertinente ao tema tratado.
Que essa abundância de material não assuste, contudo, o leitor. O livro filtra a riqueza de dados em pouco mais de 300 páginas que se sucedem com a mesma facilidade de uma narrativa romanesca. A autora soube recriar a vida teatral da época, dando conta das mudanças de cartazes e dos motivos que os inspiravam.
E, como afirma na introdução, seu estudo constitui "um esforço no sentido de fazer a história social entrar no teatro". Um esforço, pode-se assegurar, muito bem-sucedido.
O primeiro capítulo intitula-se "De Teatro de São Francisco a Teatro Ginásio Dramático" e lembra que, em 1832, o francês Jean Victor Chabry, chegado ao Rio em 1817, "mandou edificar, na rua de São Francisco de Paula, uma pequena casa de espetáculos para servir à encenação de atores amadores franceses, que trabalhavam como caixeiros, modistas e contramestres na rua do Ouvidor". Embora considerada uma sala incômoda, ali atuou João Caetano, que, em 1839, assinou seu primeiro contrato com o governo imperial. Em troca de uma subvenção oficial, o ator-empresário "comprometia-se a manter a companhia dramática composta por atores nacionais, cláusula que, de antemão, sabia ser de difícil cumprimento, já que não havia número suficiente de atores brasileiros para manter qualquer companhia na ocasião".
Em 1855, anunciou-se que "a nova empresa organizada no São Francisco havia trocado o nome daquela sala para Teatro Ginásio Dramático", acompanhando a mesma orientação da já célebre casa parisiense. Mesmo reformado, o teatro só comportava 256 espectadores e a estréia se deu com "Um Erro", de Scribe, e o "Primo da Califórnia", de Joaquim Manuel de Macedo. Assinala a autora que, em seis meses de funcionamento, "o Ginásio colocou em cena nada menos do que 25 comédias de Scribe, tornando-se este dramaturgo o predileto da companhia". O empresário Joaquim Heliodoro teve a colaboração do ensaiador francês Emilio Doux e da atriz Maria Velutti.
O comentarista de "A Imprensa", citado por Sílvia Cristina, atribui a Doux a preferência pelo repertório francês, chegando a observar que, graças a ele, "os vaudevilles nacionais acabaram-se".
De acordo com ela, há exagero nesse diagnóstico, "até porque não se tem notícias de uma produção brasileira significativa nesse gênero dramático". Foi essa a maneira, no seu conceito, de ressaltar "um certo padrão de gosto do público que se dirigia ao São Pedro para assistir aos melodramas e tragédias nele encenadas, a que, provavelmente, estas novidades do repertório de Doux deveriam desagradar".

Repertório brasileiro
Machado de Assis, em menção do ensaio, definiu também o teatro pelas pretensões pedagógicas. Dos três canais de iniciação e educação da sociedade -a tribuna, a imprensa e o palco-, este último seria o mais eficaz, porque nele "há um processo mais simples e mais ampliado; a verdade aparece nua, sem demonstração, nem análise"; "a sociedade se vê reproduzida no espelho fotográfico da forma dramática". Completa a autora que "a comédia realista se transformou em teatro de tese, chamando escritores, críticos, atores e público para a polêmica social. Por este motivo, também, o teatro realista acabou por chegar aos caminhos da artificialidade".
No campo do desempenho, a autora ressalta Gabriela de Vecchy, que atuou com João Caetano, vinda de Portugal, e depois de celebrizada como protagonista de "A Dama das Camélias", o cavalo de batalha do realismo, gozou da fama de primeira atriz fluminense, com elogios fartos de Machado de Assis. O intérprete masculino destacado é o português Furtado Coelho, que ocupou também o posto de ensaiador do Ginásio Dramático.
Já em meados do século 19 havia queixas a respeito do nosso teatro, pelo "excesso de traduções", associado à ausência de apoio do governo aos homens de letras para que se dispusessem a atuar de maneira efetiva na formação de um repertório original brasileiro. Em certo momento, porém, entre março de 1861 e fevereiro de 1862, "os escritores nacionais estiveram muito mais tempo em cartaz no Ginásio do que os estrangeiros, o que levou alguns folhetinistas mais afoitos a proclamarem o nascimento do teatro nacional".
Cumpre observar que, se em décadas recentes, sobretudo a partir da política do Teatro de Arena, floresceu uma nova dramaturgia brasileira, hoje também, por múltiplas razões, ela está praticamente silenciada.
A autora alude a contrastes dignos de nota. Nos idos de 1850, "um grande sucesso de público configurava-se com 12 ou 13 representações seguidas e mais algumas outras alternadas nas semanas ou meses posteriores". "O Demônio Familiar", de José de Alencar, por exemplo, "manteve-se em cartaz por nove representações, o que significou um sucesso para a época" (1882). Não tardou para que "Orfeu na Roça", abrasileiramento da opereta "Orphée aux Enfers", de Offenbach, atingisse mais de 400 récitas.
Dá a autora, no segundo capítulo, uma excelente contribuição para que se conheçam os desmandos do Conservatório Dramático Brasileiro, incumbido de fazer a censura dos espetáculos, desde a primeira metade do século 19. De lá para cá não se alterou a estupidez da censura, felizmente sepultada pela nova Constituição em vigor, sem que ocorresse o menor abalo na ordem pública.
Em outra atribuição, o Conservatório, logo depois de instalado, decidiu apresentar uma lista de três assuntos da história do país, oferecendo-os "como programas aos literatos brasileiros que queiram com suas composições enriquecer a literatura nacional". Louve-se o propósito de colaboração, embora só sejam referidas duas peças, inspiradas no terceiro assunto: "Amador Bueno ou A Felicidade Paulistana", de Joaquim Norberto de Souza e Silva, e "Amador Bueno", de Francisco Adolfo de Varnhagen.
A título de curiosidade, resumo um ridículo absurdo, relatado por Sílvia Cristina. Numa sessão da assembléia do conservatório, soube-se por um ofício que o inspetor do Teatro de São Pedro proibira a montagem de "Os Ciúmes de um Pedestre", quase ingênua comédia de Martins Pena. Acontece que o comediógrafo foi um dos fundadores do Conservatório e era seu segundo secretário.
Maldosamente, só posso dizer bem feito, porque não lhe cabia compactuar com qualquer tipo de censura. O episódio, pelo menos, serviu para Martins Pena criticar a polícia, em sua coluna no "Jornal do Comércio".
A admissão de certo gênero de censura contaminou outros intelectuais. A autora evoca um exemplo que hoje nos deixa perplexos: Quintino Bocaiúva condenou o Conservatório "por desvirtuar-se dos objetivos literários para concentrar-se na censura política e de costumes". Que objetivo literário pode constituir uma censura -é o caso de se perguntar.
O ministro do Império José Ildefonso de Souza Ramos nomeou uma comissão, composta por José de Alencar, João Cardoso de Meneses e Souza e Joaquim Manuel de Macedo, para, entre outras tarefas, analisar as funções do Conservatório. Os dois primeiros opinaram no sentido de que o Conservatório "deveria continuar a funcionar prioritariamente como uma comissão de censura de costumes". Já Macedo, em parecer separado, acreditava que "o Conservatório deveria estabelecer-se como uma escola de formação de atores e um órgão que protegesse os autores e seus direitos e não como uma instituição de censura prévia, como acabara por se tornar". Ponto de vista de louvável bom senso.
Depois de várias outras reflexões, entre as quais a de que "passava a ser a performance o componente determinante do fracasso ou do sucesso das representações e não o gênero dramático em si", Sílvia Cristina conclui que dramaturgos como Vasques e Macedo "acabaram por construir um modelo próprio de dramaturgia, celebrando a diferenciação entre o teatro que se produzia no Brasil e aquele gerado em outros países, alargando a base social do teatro até então existente".
Essa dramaturgia, nas palavras da autora, não significa uma decadência, mas exprimiu um instante "de florescimento e de consolidação de uma tradição dramática que perduraria até nossos dias". Mais um tema para proveitoso debate.


Sábato Magaldi é ensaísta e crítico teatral, autor de, entre outros livros, "O Texto no Teatro" (Perspectiva).


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