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Um momento decisivo do teatro brasileiro
A verdade nua
As Noites do Ginásio - Teatro e Tensões Culturais na Corte
(1832-1868)
Sílvia Cristina Martins de Souza
Ed. da Unicamp (Tel. 0/xx/19/3788-7783)
329 págs., R$ 27,00
SÁBATO MAGALDI
A primeira virtude de "As Noites do Ginásio" se encontra na quase inacreditável
quantidade de fontes arregimentadas.
A autora compulsou 53 jornais diferentes do Rio de Janeiro; anais do Parlamento Brasileiro relativos aos anos de 1846/
1847 e 1858/ 1859; coleções das leis do Império abrangendo 18 anos; relatórios do Ministério do Império de 1844 a 1873; seis
livros de memórias; 35 peças teatrais dos
dramaturgos examinados; nove trabalhos de viajantes estrangeiros; romances
e crônicas, ações cíveis e inventários; correspondência interna, atas, registros e pareceres da Censura do Conservatório
Dramático Brasileiro acerca de 167 peças,
além de extensa bibliografia pertinente
ao tema tratado.
Que essa abundância de material não
assuste, contudo, o leitor. O livro filtra a
riqueza de dados em pouco mais de 300
páginas que se sucedem com a mesma facilidade de uma narrativa romanesca. A
autora soube recriar a vida teatral da época, dando conta das mudanças de cartazes e dos motivos que os inspiravam.
E, como afirma na introdução, seu estudo constitui "um esforço no sentido de
fazer a história social entrar no teatro".
Um esforço, pode-se assegurar, muito
bem-sucedido.
O primeiro capítulo intitula-se "De
Teatro de São Francisco a Teatro Ginásio
Dramático" e lembra que, em 1832, o
francês Jean Victor Chabry, chegado ao
Rio em 1817, "mandou edificar, na rua de
São Francisco de Paula, uma pequena casa de espetáculos para servir à encenação
de atores amadores franceses, que trabalhavam como caixeiros, modistas e contramestres na rua do Ouvidor". Embora
considerada uma sala incômoda, ali
atuou João Caetano, que, em 1839, assinou seu primeiro contrato com o governo imperial. Em troca de uma subvenção
oficial, o ator-empresário "comprometia-se a manter a companhia dramática
composta por atores nacionais, cláusula
que, de antemão, sabia ser de difícil cumprimento, já que não havia número suficiente de atores brasileiros para manter
qualquer companhia na ocasião".
Em 1855, anunciou-se que "a nova empresa organizada no São Francisco havia
trocado o nome daquela sala para Teatro
Ginásio Dramático", acompanhando a
mesma orientação da já célebre casa parisiense. Mesmo reformado, o teatro só
comportava 256 espectadores e a estréia
se deu com "Um Erro", de Scribe, e o
"Primo da Califórnia", de Joaquim Manuel de Macedo. Assinala a autora que,
em seis meses de funcionamento, "o Ginásio colocou em cena nada menos do
que 25 comédias de Scribe, tornando-se
este dramaturgo o predileto da companhia". O empresário Joaquim Heliodoro
teve a colaboração do ensaiador francês
Emilio Doux e da atriz Maria Velutti.
O comentarista de "A Imprensa", citado por Sílvia Cristina, atribui a Doux a
preferência pelo repertório francês, chegando a observar que, graças a ele, "os
vaudevilles nacionais acabaram-se".
De acordo com ela, há exagero nesse
diagnóstico, "até porque não se tem notícias de uma produção brasileira significativa nesse gênero dramático". Foi essa a
maneira, no seu conceito, de ressaltar
"um certo padrão de gosto do público
que se dirigia ao São Pedro para assistir
aos melodramas e tragédias nele encenadas, a que, provavelmente, estas novidades do repertório de Doux deveriam desagradar".
Repertório brasileiro
Machado de Assis, em menção do ensaio, definiu também o teatro pelas pretensões pedagógicas. Dos três canais de
iniciação e educação da sociedade -a
tribuna, a imprensa e o palco-, este último seria o mais eficaz, porque nele "há
um processo mais simples e mais ampliado; a verdade aparece nua, sem demonstração, nem análise"; "a sociedade se vê
reproduzida no espelho fotográfico da
forma dramática". Completa a autora
que "a comédia realista se transformou
em teatro de tese, chamando escritores,
críticos, atores e público para a polêmica
social. Por este motivo, também, o teatro
realista acabou por chegar aos caminhos
da artificialidade".
No campo do desempenho, a autora
ressalta Gabriela de Vecchy, que atuou
com João Caetano, vinda de Portugal, e
depois de celebrizada como protagonista
de "A Dama das Camélias", o cavalo de
batalha do realismo, gozou da fama de
primeira atriz fluminense, com elogios
fartos de Machado de Assis. O intérprete
masculino destacado é o português Furtado Coelho, que ocupou também o posto de ensaiador do Ginásio Dramático.
Já em meados do século 19 havia queixas a respeito do nosso teatro, pelo "excesso de traduções", associado à ausência
de apoio do governo aos homens de letras para que se dispusessem a atuar de
maneira efetiva na formação de um repertório original brasileiro. Em certo momento, porém, entre março de 1861 e fevereiro de 1862, "os escritores nacionais
estiveram muito mais tempo em cartaz
no Ginásio do que os estrangeiros, o que
levou alguns folhetinistas mais afoitos a
proclamarem o nascimento do teatro nacional".
Cumpre observar que, se em décadas
recentes, sobretudo a partir da política do
Teatro de Arena, floresceu uma nova dramaturgia brasileira, hoje também, por
múltiplas razões, ela está praticamente silenciada.
A autora alude a contrastes dignos de
nota. Nos idos de 1850, "um grande sucesso de público configurava-se com 12
ou 13 representações seguidas e mais algumas outras alternadas nas semanas ou
meses posteriores". "O Demônio Familiar", de José de Alencar, por exemplo,
"manteve-se em cartaz por nove representações, o que significou um sucesso
para a época" (1882). Não tardou para
que "Orfeu na Roça", abrasileiramento
da opereta "Orphée aux Enfers", de Offenbach, atingisse mais de 400 récitas.
Dá a autora, no segundo capítulo, uma
excelente contribuição para que se conheçam os desmandos do Conservatório
Dramático Brasileiro, incumbido de fazer
a censura dos espetáculos, desde a primeira metade do século 19. De lá para cá
não se alterou a estupidez da censura, felizmente sepultada pela nova Constituição em vigor, sem que ocorresse o menor
abalo na ordem pública.
Em outra atribuição, o Conservatório,
logo depois de instalado, decidiu apresentar uma lista de três assuntos da história do país, oferecendo-os "como programas aos literatos brasileiros que queiram
com suas composições enriquecer a literatura nacional". Louve-se o propósito de
colaboração, embora só sejam referidas
duas peças, inspiradas no terceiro assunto: "Amador Bueno ou A Felicidade Paulistana", de Joaquim Norberto de Souza e
Silva, e "Amador Bueno", de Francisco
Adolfo de Varnhagen.
A título de curiosidade, resumo um ridículo absurdo, relatado por Sílvia Cristina. Numa sessão da assembléia do conservatório, soube-se por um ofício que o
inspetor do Teatro de São Pedro proibira
a montagem de "Os Ciúmes de um Pedestre", quase ingênua comédia de Martins Pena. Acontece que o comediógrafo
foi um dos fundadores do Conservatório
e era seu segundo secretário.
Maldosamente, só posso dizer bem feito, porque não lhe cabia compactuar com
qualquer tipo de censura. O episódio, pelo menos, serviu para Martins Pena criticar a polícia, em sua coluna no "Jornal do
Comércio".
A admissão de certo gênero de censura
contaminou outros intelectuais. A autora
evoca um exemplo que hoje nos deixa
perplexos: Quintino Bocaiúva condenou
o Conservatório "por desvirtuar-se dos
objetivos literários para concentrar-se na
censura política e de costumes". Que objetivo literário pode constituir uma censura -é o caso de se perguntar.
O ministro do Império José Ildefonso
de Souza Ramos nomeou uma comissão,
composta por José de Alencar, João Cardoso de Meneses e Souza e Joaquim Manuel de Macedo, para, entre outras tarefas, analisar as funções do Conservatório.
Os dois primeiros opinaram no sentido
de que o Conservatório "deveria continuar a funcionar prioritariamente como
uma comissão de censura de costumes".
Já Macedo, em parecer separado, acreditava que "o Conservatório deveria estabelecer-se como uma escola de formação
de atores e um órgão que protegesse os
autores e seus direitos e não como uma
instituição de censura prévia, como acabara por se tornar". Ponto de vista de louvável bom senso.
Depois de várias outras reflexões, entre
as quais a de que "passava a ser a performance o componente determinante do
fracasso ou do sucesso das representações e não o gênero dramático em si", Sílvia Cristina conclui que dramaturgos como Vasques e Macedo "acabaram por
construir um modelo próprio de dramaturgia, celebrando a diferenciação entre o
teatro que se produzia no Brasil e aquele
gerado em outros países, alargando a base social do teatro até então existente".
Essa dramaturgia, nas palavras da autora, não significa uma decadência, mas exprimiu um instante "de florescimento e
de consolidação de uma tradição dramática que perduraria até nossos dias". Mais
um tema para proveitoso debate.
Sábato Magaldi é ensaísta e crítico teatral, autor
de, entre outros livros, "O Texto no Teatro" (Perspectiva).
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