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Décio de Almeida Prado examina a história da dramaturgia no Brasil desde 1570
Nosso teatro
SÁBATO MAGALDI
O novo livro de Décio de Almeida Prado realiza, com brilho, a proposta de seu autor: a síntese do que analisou em minúcias nas obras anteriores -"Teatro de Anchieta a Alencar" (Perspectiva), "O Drama Romântico Brasileiro" (Perspectiva) e "Seres, Coisas, Lugares" (Companhia das Letras).
O prefácio observa que esse retorno à história do teatro nacional visou a "destacar-lhe as grandes linhas, o arcabouço, ainda que com o sacrifício de particularidades de ordem artística. Em consequência disso, sem que eu o planejasse, avultou a parte social, o diálogo que os nossos dramaturgos e comediógrafos travaram com os acontecimentos históricos do Brasil, sobretudo no século 19". O intento foi plenamente alcançado, mostrando-se nítido o retrato da nossa realidade.
Um livro de ensaios
Esclarece ainda o autor: "Quanto à índole deste estudo, vejo-o antes como ensaio do que como resumo ou manual didático". Assim, guiou-se "primordialmente por idéias, artísticas ou políticas, privilegiando em consequência certos autores e certas obras. Não há dúvida que perante o historiador, em princípio, todos os fatos são iguais. Já o ensaísta, como me julgo ser a este propósito, tem pleno direito às suas opções, embora sujeito a ter de pagar eventualmente por elas". Não creio que Décio possa dever nada, em razão das escolhas, sempre justas e bem fundamentadas. Caberia apenas perguntar se, sob essa perspectiva, não é um tanto contraditório o título do volume.
As qualidades do ensaio são múltiplas. É enorme a familiaridade de Décio com o tema, superior à de todos que o trataram antes dele. Não se restringe a um ou a outro aspecto do fenômeno cênico o domínio abrangido: ele se estende a toda a vida teatral, e a ela inscrita na realidade do país. E com a virtude não menos significativa de ser muito bem escrito o livro, numa linguagem direta e elegante, a que não falta uma fina ironia.
Cada capítulo incorpora os elementos mais apropriados para a sua plena realização. Ora os relatos de viajantes estrangeiros, que tiveram oportunidade de testemunhar os espetáculos, alvo em geral de juízos muito negativos. Ora os comentários e outros documentos da época. Ora o diálogo com as fontes européias, que não se limitam à dramaturgia e recorrem também à ópera, à opereta e mesmo à literatura. Ora, finalmente, a crítica abalizada de protagonistas e observadores contemporâneos, como Machado de Assis e Artur Azevedo.
Tornam-se raras, assim, as discordâncias. Uma diz respeito ao primeiro capítulo, dedicado ao período colonial. Talvez o padre jesuíta José de Anchieta não tivesse em vista, de fato, a arte teatral, porque seu objetivo fosse assumidamente a catequese. Porém qualificar de sermões dramatizados a sua obra, tão presa ao teatro religioso medieval e ao vicentino, parece esquecer uma característica peculiar do gênero. Embora fique evidente que Décio leu todos os autos anchietanos, não lhes deu a importância de citar um só título, o que não ocorrerá, mais tarde, com outros autores.
"O Advento do Romantismo" valoriza a formação real do nosso teatro, já que a dramaturgia religiosa não deixou descendência, nem se ajustavam ao nosso feitio as duas comédias do baiano Manuel Botelho de Oliveira escritas em espanhol -"Hay Amigo para Amigo" e "Amor, Engaños y Celos"- e editadas em Lisboa no princípio do século 18. Aliás, se há exagero no veredicto do historiador literário José Veríssimo, em 1912, vale a pena considerá-lo: "Produto do Romantismo, o teatro brasileiro finou-se com ele".
Como havia feito em outras oportunidades, Décio situa de forma insuperável o papel do ator João Caetano no desenvolvimento do desempenho nacional, bem como de autores e peças que principiaram a desenhar a imagem da nossa dramaturgia. Fixou ele, com clareza, a passagem da tutela de Lisboa para a de Paris, que veio a ocorrer ao longo do século 19. Em 1838, pela companhia de João Caetano, estreou a peça "Antônio José ou o Poeta e a Inquisição", de Gonçalves de Magalhães, e no prefácio à edição lê-se uma sentença enfática: "Lembrarei somente que esta é, se me não engano, a primeira tragédia escrita por um brasileiro, e única de assunto nacional". Sem recorrer ao conceito segundo o qual a tragédia se arrola historicamente no classicismo, enquanto o drama é o gênero típico do romantismo, como propõe Victor Hugo no prefácio de "Cromwell", Décio conclui, com razão, que Gonçalves de Magalhães "nunca definiu bem se queria ser o último clássico ou o primeiro romântico".
O romantismo descabelado chegou ao Brasil por meio do melodrama, praticado -lembra o ensaísta- por Luís Antônio Bargain, "francês de nascimento, mas autor teatral brasileiro", e Luís Carlos Martins Pena, antes que fundasse a nossa comédia de costumes. Segue-se a análise de Gonçalves Dias e sobretudo de sua peça "Leonor de Mendonça", "o mais belo drama romântico brasileiro", em que a força motora das personagens é "algo que antecipa de perto o determinismo psicológico e social de nossos dias". O outro autor contemplado no capítulo -Manoel Antônio Álvares de Azevedo- merece um pertinente exame da peça, "ou fragmento de peça", "Macário".
Martins Pena
Décio procede a interessante inventário da nacionalidade dos assuntos tratados nas peças até meados do século 19, chegando à conclusão de que eram raríssimas as de temas brasileiros. E elas têm "qualidade literária secundária, como "Fernandes Vieira ou Pernambuco Libertado", de Burgain, ou tentativas malogradas de adaptar ao palco o indianismo vitorioso na poesia, como "Itaminda", de Martins Pena, e "Cobé", de Joaquim Manoel de Macedo". Não foi o que se verificou, porém, com a comédia em um ato, decorrência da prática do entremez, complemento do espetáculo, trazido ao Rio de Janeiro, em 1829, pela companhia portuguesa encabeçada por Ludovina Soares da Costa. Acha-se aí a origem da comédia de Martins Pena, criadora do filão mais rico de nossa dramaturgia.
Ao caracterizar Martins Pena, Décio afirma que "seu teatro revela um pendor quase jornalístico pelos fatos do dia". Geograficamente, o comediógrafo situa-se entre o Rio de Janeiro, a roça próxima e o sertão distante, representado pelo tropeiro paulista. "O Martins Pena comediógrafo, seja pelo temperamento, seja pela escrita teatral, nada tinha de romântico (a comédia romântica, quando existe, banha-se na fantasia poética de Shakespeare)". Satirizando "as atitudes exaltadas e as declarações de amor bombásticas", afastava-se da escola. "Mas foi romântico, ainda que a contragosto, pela época em que viveu e que retratou com uma mistura inconfundivelmente pessoal de ingenuidade e de engenhosidade artística" -é a conclusão do ensaísta.
O quarto capítulo enfeixa quatro dramas históricos nacionais, que se inscrevem, de acordo com Décio, "um tanto tardiamente, no romantismo social desabrochado depois de 1830". São eles "Calabar", de Agrário de Menezes; "O Jesuíta", de José de Alencar; "Sangue Limpo", de Paulo Eiró; e "Gonzaga ou a Revolução de Minas", de Castro Alves.
Acerca de cada texto, há sempre uma focalização original, que
ressalta a condição de mulato, em
Calabar, "portanto em princípio
adverso aos brancos portugueses"; a ausência dos negros, no
projeto nacional de "O Jesuíta",
"talvez por preconceito racial, talvez por julgá-los já integrados,
ainda que pela escravidão, à vida
diária brasileira"; e o apoio sobre
"dois mitos correntes no século
19: o da América como espaço moral em que renasceria a humanidade liberta de suas mazelas européias, e do jesuitismo como poder
conspiratório, força oculta movendo em silêncio indivíduos e nações"; a extensão das idéias de liberdade ao âmbito nacional, abolidos o regime escravocrata e os
preconceitos raciais, em "Sangue
Limpo"; e, em "Gonzaga ou a Revolução de Minas", a ênfase dada
aos três fios que se entrelaçam no
enredo: o primeiro, "que ocorre
com menos profundidade, surpreendentemente, é o da Revolução de Minas"; o segundo, "o que
dava atualidade ao drama, naqueles anos em que a campanha abolicionista começava a pegar fogo";
e o terceiro, "que puxa o enredo
de princípio a fim.
Os amores de Maria Dorotéia e
Tomaz Antônio Gonzaga, cantados liricamente pelo poeta em
"Marília de Dirceu'". O leitor tem
uma amostra expressiva do nosso
drama histórico.
Ao romantismo sucede, na evolução artística, o realismo, e Décio
conceitua com precisão a mudança de perspectiva: "Se o núcleo do
drama romântico era frequentemente a nação, passa a ser, no realismo, a família, vista como célula
mater da sociedade". Ao lado de
nomes como Pinheiro Guimarães,
autor de "História de uma Moça
Rica", e Quintino Bocaiúva, que
escreveu uma peça especificamente intitulada "A Família", sobressai o de José de Alencar, que chegou a "propor como modelo de
modernidade a dramaturgia de
Alexandre Dumas Filho". Lembra
Décio que os temas da cortesã e do
dinheiro, "prediletos de Alencar,
e de todo o teatro realista brasileiro, haviam sido lançados na França por Alexandre Dumas Filho",
em "La Dame aux Camélias" e
"La Question d'Argent".
Entretanto, conforme pondera
com justeza o ensaísta, "o verdadeiro problema social do Brasil
naquele momento era obviamente
outro: o da escravidão", enfrentado por Alencar em "O Demônio
Familiar", comédia, e em
"Mãe", drama. A respeito da primeira, Décio ressalta corretamente que, em função do entrecho, está sugerido que a "liberdade seria
assim a condição "sine que non"
da maturidade moral. O homem
só é integralmente ele mesmo
quando livre e responsável". Já
em relação a "Mãe", parece-me
discutível a exegese do ensaísta.
Talvez ele tenha extrapolado a
intenção do dramaturgo, que seria
a de exaltar a abnegação da mãe
negra Joana, sacrificada por causa
do preconceito racial e, com o seu
suicídio, condenando a sociedade
escravocrata. A mãe que se anula
em função do filho é um dos mitos
ancestrais e Alencar, dedicando a
peça à própria mãe, enobreceu o
gesto superior de Joana. Por isso, o
desfecho do drama fica diminuído, com o veredicto de Décio:
"Alguém teria de ser imolado aos
supostamente vãos e tolos preconceitos sociais -e antes a mãe velha, parece dizer a peça, do que o
filho promissor, já integrado aos
brancos. Alencar -pode-se porventura concluir- gostaria que a
escravidão, juntamente com a sua
herança negra sumisse de repente
da vida brasileira, num passe de
mágica que o teatro -não a realidade histórica- mostrava-se capaz de fazer". Não seria esse um
juízo injusto com Alencar?
Décio observa, com procedência, que em vez de o naturalismo
suceder ao realismo, no teatro
brasileiro, como aconteceu no teatro francês, a "sequência foi interrompida por uma espécie de avalanche de música ligeira (...). A irrupção da opereta francesa, acompanhada por suas sequelas cênicas, trouxe consigo a morte da literatura teatral considerada séria". Deploraram a situação autores, intérpretes e críticos, sobretudo Machado de Assis, salvo o
público, o qual, segundo Décio,
"de qualquer forma nunca dera
atenção aos nossos escritores".
"História Concisa" dedica o capítulo seguinte, assim, aos três gêneros do teatro musicado -a opereta, a revista e a mágica. Essa é,
sem dúvida uma das partes mais
atraentes do estudo, porque ninguém soube reunir, com tanto conhecimento e espírito, as várias
manifestações, na França e no
Brasil, seus respectivos criadores e
intérpretes, sem esquecer os elogiados cenógrafos italianos Gaetano Carrancini e Oreste Coliva, de
importante colaboração ao teatro
brasileiro.
"A Evolução da Comédia" ou,
mais especificamente, da comédia
de costumes, criada por Martins
Pena, trata dos textos representativos de Joaquim Manoel de Macedo ("A Torre em Concurso", "O
Macaco da Vizinha" e "Antonica
da Silva") e França Júnior ("Como se Fazia um Deputado",
"Caiu o Ministério!" e "As Doutoras"). A visão de Décio, a respeito deles, não é amável. Macedo
"não possuía a a envergadura intelectual de Alencar" e, "quando
arrisca pouco, acerta às vezes.
Quando aposta mais forte, afunda-se no folhetinesco e no novelesco". E França Júnior foi verberado no conservadorismo de "As
Doutoras" com a seguinte frase:
"Que ponto de vista tão indiferente ao destino humano da mulher tenha sido defendido depois
de Ibsen haver escrito "Casa de
Boneca" cobre de vergonha a dramaturgia nacional".
Agrada-me no comentário de
Décio, em "A Passagem do Século: a Burleta", tratando de Artur
Azevedo, não ter sucumbido ao
preconceito de parte da crítica do
Rio que, nos anos 50, condenava o
Teatro dos Sete por escolher "O
Mambembe", a meu ver um dos
melhores espetáculos da nossa
história cênica. Na imensa obra do
autor maranhense, o ensaísta privilegiou exatamente essa e outra
burleta, "A Capital Federal", ainda que, sobre ele, faça um juízo
demasiado severo, para não dizer
injusto: "As suas qualidades estavam na escrita teatral, feita para o
palco, não para a folha impressa".
Creio ser difícil uma escrita teatral
que funcione no palco não suportar também uma leitura.
Encerra o livro um capítulo até
agora inédito sobre "O Teatro no
Rio de Janeiro", que fornece, a
partir do "Almanaque Teatral"
da Livraria Cruz Coutinho, uma
imagem muito clara das casas de
espetáculos e da vida cênica na então capital da República, irradiadora da arte para todo o país. Lastima-se apenas que Décio de Almeida Prado, por julgar-se envelhecido (completará em agosto 82
anos), tenha interrompido "História Concisa do Teatro Brasileiro" em 1908, abdicando do plano
de fechar seu trabalho, que em "O
Teatro Brasileiro Moderno" cobre de 1930 a 1980.
Mas, mesmo com esse pequeno
hiato de 22 anos, de resto menos
expressivo do que aquilo que se
passou antes e depois, pode-se
afirmar que ele fez a mais profunda meditação sobre o teatro no
Brasil.
História Concisa do Teatro Brasileiro - 1570-1980
Décio de Almeida Prado
Edusp (Tel. 011/818-4150)
176 págs., 15,00
Sábato Magaldi é ensaísta e crítico teatral, autor, entre outros livros, de "Nelson Rodrigues: Dramaturgias e Encenações" e "O Texto no Teatro" (ambos pela Perspectiva).
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