São Paulo, Sábado, 08 de Maio de 1999
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Estudo discute o conceito de crise e a dialética marxista
A gramática do capital

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

Esse livro, sobre o "conceito de crise na crítica de Marx à economia política", como indica o subtítulo, é um trabalho cuidadoso, muito bem pensado e estruturado, cobrindo a melhor bibliografia, que além do mais toma como fio condutor a idéia muito feliz de que cada passo do desenvolvimento das formas do capital traz em seu bojo uma forma de crise. No fundo, o livro trata da dialética marxista, tentando descrever como esta nasce da virada da dialética hegeliana. Mas aí a porca torce o rabo.
Como se sabe, para Hegel e Marx é fundamental que exista uma contradição no nível do ser. Ora, desde Aristóteles o princípio da contradição arma o discurso porque cada coisa só pode estar desprovida de qualquer movimento contraditório. Essa é uma condição para que as próprias palavras possam ter um significado unívoco. Se de algo se pode afirmar simultaneamente um predicado e sua negação, então esse algo não é algo; está de tal forma fluindo que nada pode ser dito dele. Princípio de identidade e princípio de contradição constituem assim faces diferentes da mesma moeda.
Para separar os dois princípios, Hegel vai afirmar que este algo, ao ser considerado do ponto de vista da eternidade, contém em si mesmo sua própria negação; vale dizer, não é algo determinando-se precisamente quando perde sua "algoidade", quando ele vai ao fundo, isto é, encontra nova forma de identidade ontologicamente diferente da primeira. Por isso, a matriz da identidade de qualquer objeto há de ser pensada tendo em vista a identidade do sujeito livre, um si mesmo que se vê num espelho reduzido a essa projeção de si. Segue que tudo o que existe, existe como momento de uma reflexão que por estar incluindo tudo é o próprio Absoluto, cuja representação é Deus.
Em suma, toda identidade se torna negativa porque é momento do desdobrar-se autônomo de Absoluto. Como esse processo atemporal se representa na trindade do Deus Pai que se determina no Filho, cuja morte configura o Espirito Santo, toda forma do pensamento especulativo supera no plano superior da razão essa passagem, que vai além da representação, do universal-substância determinar-se, particularizar-se, num singular espiritual. Por isso o conceito, diferente por conseguinte da representação universal, traz em si mesmo a capacidade de dividir-se num juízo, que por sua vez se forma no silogismo da Idéia.

Dialética materialista
Também é sabido que Marx, desde sua juventude, denunciou o misticismo da lógica hegeliana, que empresta à Idéia a capacidade de pôr seu caso. Ora, como pode então aceitar a tríade hegeliana do universal, particular, singular e, sobretudo, que sentido pode emprestar a uma contradição real, quando pretende ser materialista? O mais surpreendente, contudo, é que muitas vezes Marx chama de contradição àquilo que todos nós tomamos por contrariedade.
A todo momento cita o exemplo de duas forças lineares que se chocam para resultarem numa curva. Mas uma força se torna positiva e outra negativa na medida em que alguém de fora, numa reflexão exterior, atribui-lhe arbitrariamente um sinal. Hegel, é obvio, não ignora o problema, não ignora que, quando está no nível da representação também ele comete tais arbitrariedades, mas, ao tomar a natureza como o momento da exteriorização da razão espiritual, a identidade de cada coisa mundana se relativiza em vista do movimento do Espírito.
Do novo ponto de vista, o que existe efetivamente é racional e vice-versa, de sorte que identificam-se discurso e ser, porque o ser é Verbo. Se na natureza nada se perde e tudo se transforma, a transformação do natural não logra adquirir aquela transparência que só o conceito e a Idéia possuem. No entanto, ao dizer a identidade das coisas, pelo simples fato de dizê-la, já estamos captando um movimento ideal residindo nela, que só vai ser plenamente compreendido e aceito quando tudo o que for efetivamente venha a ser posto como racional.
Que sentido pode então adquirir uma dialética materialista? Hegel pode ver na contrariedade o momento mais bruto de uma contradição a ser desenvolvida. Mas Marx? De algum modo precisa encontrar no real o equivalente do Espírito como Sujeito, como Absoluto. Sabemos que o capital cumprirá essa função de vir a ser um sujeito automático. Assim resume Marcos Müller a tese dele e de Grespan: "Marx detecta nela (na metafísica de Aristóteles) elementos que, em parte exprimem esta relação fundamental da sociedade moderna (capital/trabalho), em parte permitem compreendê-la a partir do modelo hegeliano. Segundo ele, o capital é concebido como força totalizadora, que se constitui abarcando e subordinando a si as demais relações sociais e condições exteriores (pressupostos históricos e sociais que ele transforma em resultado de sua reprodução), de modo a incluir em si, como seu momento o trabalho vivo que é a única fonte e medida do seu próprio conteúdo (trabalho objetivado), ao mesmo tempo que o exclui de si, para reduzir ao mínimo essa dependência do trabalho vivo, pois este é atividade criadora, que igualmente pretende constituir-se como totalidade histórica e, por isso, recorrentemente negada pelo capital".
No entanto, como a exclusão do trabalho pode pretender constituir-se em totalidade histórica? Responde Grespan : "Daí que o capital assuma o caráter fetichista de "sujeito" a que se elevou a "substância" do valor do qual se apropria. Daí também que o capital deva excluir o trabalho enquanto possibilidade de compor um todo pelo lado substancial da criação do valor. Ele inclui em si o trabalho como momento -capital variável- e o exclui como totalidade potencial, como possibilidade da própria "substância" do valor tornar-se "sujeito" por si mesma". E logo abaixo: "Com a inclusão do trabalho enquanto momento e a exclusão dele enquanto totalidade potencial, completa-se a figura da oposição entre capital e trabalho (...) e o trabalho revela seu caráter em si contraditório".
Grifo: "A totalidade excluída é potencial". Pouco importa que Grespan invoque, em nota, o artigo de Theunissen em que se inspira. Senhores filósofos, a oposição entre trabalho, tomado objetivamente como morto enquanto calculado para vir a ser capital variável, e o trabalho vivo, enquanto totalidade potencial, cuja identidade de sujeito lhe é roubada pelo próprio capital, não constitui uma contradição "real" nem aqui nem na China. Nem mesmo na lógica hegeliana. Só há contradição quando a algo for atribuído dois predicados ao mesmo tempo. Caso contrário, diríamos que a frase "Sócrates está vivo, está morto" quando Sócrates estivesse tomando cicuta constitui uma contradição.
Ora, nenhum morto é capaz de tomar esse veneno e o "processo" de tomá-lo não pode constituir uma contradição em processo, a não ser que esse processo se integre no movimento do Absoluto. Por certo, o capital como sujeito automático age e se "pensa como se" fosse uma boa infinidade, mas se esse "como se" é uma ilusão necessária, que faz desse capital um processo atuante na realidade, o desafio é compreender que tipo de relação as relações de produção mantêm com as forças produtivas, o que de modo algum pode ser entendido como forma de manifestação do Espírito Absoluto. A simples menção do capital como "sujeito" automático, colocando a palavra "sujeito" entre aspas não resolve o problema.

Necessidade relativa
É por isso que Grespan, muito consequentemente, considera o desenvolvimento das categorias do capital na base do conceito de necessidade relativa: "Para explicar a passagem de um momento para o seguinte como algo necessário, não se pode supor a identidade entre a negação de um e a determinação do outro, que nunca é imediata. Mais do que a referência negativa ao outro, deve haver em ambos também a referência positiva, no sentido de que as condições de cada um têm de estar contidas nas do momento anterior e conter, por sua vez, as do posterior. É tal inclusão que faz a sucessão entre as fases do ciclo não se limitar a uma mera possibilidade -um ato determinado por fatores completamente exteriores aos que constituem essencialmente a fase considerada. A desvalorização (do capital) seria, neste caso, simples casualidade que interrompe a valorização "normal", ou esta última o seria enquanto termo de uma crise de desvalorização permanente. Mas se uma inclui as condições de outra, a sucessão é necessária, até porque tanto a valorização quanto a desvalorização são igualmente determinadas pelas disposições constitutivas do capital em geral".
Se no movimento, na "contradição em processo", se encontra uma base que percorre um momento e seu sucessor, mesmo que essa identidade seja dita contraditória, encontramos a boa substância aristotélica, pois essa contradição oculta não está operando na mudança de uma forma para outra. É sintomático que a análise da crise, feita por Grespan, recorra à explicação aristotélica que faz da mudança passagem da potência ao ato. Mas, desse modo, se a crise atualiza o negativo particular a uma forma posta, não vejo como pode apelar para uma contradição que se supera ("aufhebt") sem se comprometer com o misticismo lógico hegeliano.
No fundo, por mais sofisticado e interessante que seja o texto de Grespan, está sempre pressupondo, como fez o marxismo vulgar, que, se Marx raciocinou dessa maneira, assim deve ser o modo de se pensar dialeticamente, de sorte que a dialética se torna uma lógica descritiva dos argumentos desenvolvidos por esse autor. Mas teria ele de fato conseguido levar a cabo seu projeto de revirar, seja lá como se entende essa inversão, a lógica especulativa hegeliana sem pagar o preço do logicismo místico?
É sintomático que Grespan não dê a mínima importância à distinção, feita por Marx, entre história contemporânea e história do vir a ser do capital. Não pode aceitar a devoração do tempo feita pelo próprio capital em seu movimento de reposição. Também é sintomático que, ao analisar o fetichismo, não leve a sério o caráter ilusório, mas necessário desse fenômeno. Para ele, o capital, no fundo, é um mau infinito, porquanto a infinidade que lhe atribui não logra ultrapassar a sucessão temporal. Mas a análise pormenorizada que faz das várias formas do capital, em que a superação da contradição está sempre presente, não pode ser justificada a não ser como ecos da lógica hegeliana. Falta-lhe uma análise, logicamente fundada, da gramática do capital.
Mas, se as soluções propostas por Grespan ao velho problema da inversão da dialética não me convencem, não é por isso que deixo de admirar seu trabalho. Não acredito que alguém possa rescrever a obra de outrem como se estivesse psicografando o pensamento original. Grespan pensa Marx e é isso o que interessa. Visto que não creio que Marx consiga montar o sistema coerente que requeria seu projeto político -o que não me parece impedir uma extraordinária crítica dos procedimentos alienadores do capital feita na base de uma fantástica torção dos conceitos do idealismo alemão e da economia política clássica-, não peço que um comentário cubra todos os aspectos de uma totalidade que não existe.
Desse ponto de vista, Grespan sublinha até o limite os processos antagônicos das categorias marxistas, preparando o momento em que intervém a "Aufhebung", como "ressonância" da lógica hegeliana. Mas em vez de ressaltar a tensão, como tenho procurado fazer, sublinha o sistema. Assim sendo, parece-me que fotografa uma parada numa escrita que tanto mais avança quanto mais revela a impossibilidade desse avanço. Por isso parece-me que cada releitura de seu livro, merecedor de um estudo cuidadoso, se não convencer o leitor, por certo fará com que se torne menos assertivo e mais preparado para refletir sobre os problemas filosóficos levantados pela obra de Marx.



O Negativo do Capital
Jorge Luiz da Silva Grespan Hucitec (Tel. 011/543-0653) 287 págs., R$ 25,00




José Arthur Giannotti é professor de filosofia da USP e autor de "Trabalho e Reflexão" (Brasiliense), entre outros.



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