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Estudo discute o conceito de crise e a dialética marxista
A gramática do capital
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
Esse livro, sobre o "conceito de crise na crítica
de Marx à economia política", como indica o
subtítulo, é um trabalho cuidadoso, muito bem pensado e estruturado, cobrindo a melhor bibliografia, que além do mais toma como fio condutor a idéia muito feliz
de que cada passo do desenvolvimento das formas do capital traz
em seu bojo uma forma de crise.
No fundo, o livro trata da dialética
marxista, tentando descrever como esta nasce da virada da dialética hegeliana. Mas aí a porca torce
o rabo.
Como se sabe, para Hegel e Marx
é fundamental que exista uma
contradição no nível do ser. Ora,
desde Aristóteles o princípio da
contradição arma o discurso porque cada coisa só pode estar desprovida de qualquer movimento
contraditório. Essa é uma condição para que as próprias palavras
possam ter um significado unívoco. Se de algo se pode afirmar simultaneamente um predicado e
sua negação, então esse algo não é
algo; está de tal forma fluindo que
nada pode ser dito dele. Princípio
de identidade e princípio de contradição constituem assim faces
diferentes da mesma moeda.
Para separar os dois princípios,
Hegel vai afirmar que este algo, ao
ser considerado do ponto de vista
da eternidade, contém em si mesmo sua própria negação; vale dizer, não é algo determinando-se
precisamente quando perde sua
"algoidade", quando ele vai ao
fundo, isto é, encontra nova forma de identidade ontologicamente diferente da primeira. Por isso,
a matriz da identidade de qualquer objeto há de ser pensada tendo em vista a identidade do sujeito
livre, um si mesmo que se vê num
espelho reduzido a essa projeção
de si. Segue que tudo o que existe,
existe como momento de uma reflexão que por estar incluindo tudo é o próprio Absoluto, cuja representação é Deus.
Em suma, toda identidade se
torna negativa porque é momento
do desdobrar-se autônomo de Absoluto. Como esse processo atemporal se representa na trindade do
Deus Pai que se determina no Filho, cuja morte configura o Espirito Santo, toda forma do pensamento especulativo supera no plano superior da razão essa passagem, que vai além da representação, do universal-substância determinar-se, particularizar-se,
num singular espiritual. Por isso o
conceito, diferente por conseguinte da representação universal, traz
em si mesmo a capacidade de dividir-se num juízo, que por sua vez
se forma no silogismo da Idéia.
Dialética materialista
Também é sabido que Marx,
desde sua juventude, denunciou o
misticismo da lógica hegeliana,
que empresta à Idéia a capacidade
de pôr seu caso. Ora, como pode
então aceitar a tríade hegeliana do
universal, particular, singular e,
sobretudo, que sentido pode emprestar a uma contradição real,
quando pretende ser materialista?
O mais surpreendente, contudo, é
que muitas vezes Marx chama de
contradição àquilo que todos nós
tomamos por contrariedade.
A todo momento cita o exemplo
de duas forças lineares que se chocam para resultarem numa curva.
Mas uma força se torna positiva e
outra negativa na medida em que
alguém de fora, numa reflexão exterior, atribui-lhe arbitrariamente
um sinal. Hegel, é obvio, não ignora o problema, não ignora que,
quando está no nível da representação também ele comete tais arbitrariedades, mas, ao tomar a natureza como o momento da exteriorização da razão espiritual, a identidade de cada coisa mundana se
relativiza em vista do movimento
do Espírito.
Do novo ponto de vista, o que
existe efetivamente é racional e vice-versa, de sorte que identificam-se discurso e ser, porque o ser
é Verbo. Se na natureza nada se
perde e tudo se transforma, a
transformação do natural não logra adquirir aquela transparência
que só o conceito e a Idéia possuem. No entanto, ao dizer a identidade das coisas, pelo simples fato
de dizê-la, já estamos captando
um movimento ideal residindo
nela, que só vai ser plenamente
compreendido e aceito quando tudo o que for efetivamente venha a
ser posto como racional.
Que sentido pode então adquirir
uma dialética materialista? Hegel
pode ver na contrariedade o momento mais bruto de uma contradição a ser desenvolvida. Mas
Marx? De algum modo precisa encontrar no real o equivalente do
Espírito como Sujeito, como Absoluto. Sabemos que o capital
cumprirá essa função de vir a ser
um sujeito automático. Assim resume Marcos Müller a tese dele e
de Grespan: "Marx detecta nela
(na metafísica de Aristóteles) elementos que, em parte exprimem
esta relação fundamental da sociedade moderna (capital/trabalho),
em parte permitem compreendê-la a partir do modelo hegeliano. Segundo ele, o capital é concebido como força totalizadora, que
se constitui abarcando e subordinando a si as demais relações sociais e condições exteriores (pressupostos históricos e sociais que
ele transforma em resultado de
sua reprodução), de modo a incluir em si, como seu momento o
trabalho vivo que é a única fonte e
medida do seu próprio conteúdo
(trabalho objetivado), ao mesmo
tempo que o exclui de si, para reduzir ao mínimo essa dependência
do trabalho vivo, pois este é atividade criadora, que igualmente
pretende constituir-se como totalidade histórica e, por isso, recorrentemente negada pelo capital".
No entanto, como a exclusão do
trabalho pode pretender constituir-se em totalidade histórica?
Responde Grespan : "Daí que o
capital assuma o caráter fetichista
de "sujeito" a que se elevou a
"substância" do valor do qual se
apropria. Daí também que o capital deva excluir o trabalho enquanto possibilidade de compor
um todo pelo lado substancial da
criação do valor. Ele inclui em si o
trabalho como momento -capital variável- e o exclui como totalidade potencial, como possibilidade da própria "substância" do
valor tornar-se "sujeito" por si
mesma". E logo abaixo: "Com a
inclusão do trabalho enquanto
momento e a exclusão dele enquanto totalidade potencial, completa-se a figura da oposição entre
capital e trabalho (...) e o trabalho
revela seu caráter em si contraditório".
Grifo: "A totalidade excluída é
potencial". Pouco importa que
Grespan invoque, em nota, o artigo de Theunissen em que se inspira. Senhores filósofos, a oposição
entre trabalho, tomado objetivamente como morto enquanto calculado para vir a ser capital variável, e o trabalho vivo, enquanto
totalidade potencial, cuja identidade de sujeito lhe é roubada pelo
próprio capital, não constitui uma
contradição "real" nem aqui
nem na China. Nem mesmo na lógica hegeliana. Só há contradição
quando a algo for atribuído dois
predicados ao mesmo tempo. Caso contrário, diríamos que a frase
"Sócrates está vivo, está morto"
quando Sócrates estivesse tomando cicuta constitui uma contradição.
Ora, nenhum morto é capaz de
tomar esse veneno e o "processo" de tomá-lo não pode constituir uma contradição em processo, a não ser que esse processo se
integre no movimento do Absoluto. Por certo, o capital como sujeito automático age e se "pensa como se" fosse uma boa infinidade,
mas se esse "como se" é uma ilusão necessária, que faz desse capital um processo atuante na realidade, o desafio é compreender que
tipo de relação as relações de produção mantêm com as forças produtivas, o que de modo algum pode ser entendido como forma de
manifestação do Espírito Absoluto. A simples menção do capital
como "sujeito" automático, colocando a palavra "sujeito" entre
aspas não resolve o problema.
Necessidade relativa
É por isso que Grespan, muito
consequentemente, considera o
desenvolvimento das categorias
do capital na base do conceito de
necessidade relativa: "Para explicar a passagem de um momento
para o seguinte como algo necessário, não se pode supor a identidade entre a negação de um e a determinação do outro, que nunca é
imediata. Mais do que a referência
negativa ao outro, deve haver em
ambos também a referência positiva, no sentido de que as condições de cada um têm de estar contidas nas do momento anterior e
conter, por sua vez, as do posterior. É tal inclusão que faz a sucessão entre as fases do ciclo não se
limitar a uma mera possibilidade
-um ato determinado por fatores
completamente exteriores aos que
constituem essencialmente a fase
considerada. A desvalorização (do
capital) seria, neste caso, simples
casualidade que interrompe a valorização "normal", ou esta última o seria enquanto termo de uma
crise de desvalorização permanente. Mas se uma inclui as condições
de outra, a sucessão é necessária,
até porque tanto a valorização
quanto a desvalorização são igualmente determinadas pelas disposições constitutivas do capital em
geral".
Se no movimento, na "contradição em processo", se encontra
uma base que percorre um momento e seu sucessor, mesmo que
essa identidade seja dita contraditória, encontramos a boa substância aristotélica, pois essa contradição oculta não está operando na
mudança de uma forma para outra. É sintomático que a análise da
crise, feita por Grespan, recorra à
explicação aristotélica que faz da
mudança passagem da potência ao
ato. Mas, desse modo, se a crise
atualiza o negativo particular a
uma forma posta, não vejo como
pode apelar para uma contradição
que se supera ("aufhebt") sem se
comprometer com o misticismo
lógico hegeliano.
No fundo, por mais sofisticado e
interessante que seja o texto de
Grespan, está sempre pressupondo, como fez o marxismo vulgar,
que, se Marx raciocinou dessa maneira, assim deve ser o modo de se
pensar dialeticamente, de sorte
que a dialética se torna uma lógica
descritiva dos argumentos desenvolvidos por esse autor. Mas teria
ele de fato conseguido levar a cabo
seu projeto de revirar, seja lá como
se entende essa inversão, a lógica
especulativa hegeliana sem pagar
o preço do logicismo místico?
É sintomático que Grespan não
dê a mínima importância à distinção, feita por Marx, entre história
contemporânea e história do vir a
ser do capital. Não pode aceitar a
devoração do tempo feita pelo
próprio capital em seu movimento
de reposição. Também é sintomático que, ao analisar o fetichismo,
não leve a sério o caráter ilusório,
mas necessário desse fenômeno.
Para ele, o capital, no fundo, é um
mau infinito, porquanto a infinidade que lhe atribui não logra ultrapassar a sucessão temporal.
Mas a análise pormenorizada que
faz das várias formas do capital,
em que a superação da contradição está sempre presente, não pode ser justificada a não ser como
ecos da lógica hegeliana. Falta-lhe
uma análise, logicamente fundada, da gramática do capital.
Mas, se as soluções propostas
por Grespan ao velho problema da
inversão da dialética não me convencem, não é por isso que deixo
de admirar seu trabalho. Não acredito que alguém possa rescrever a
obra de outrem como se estivesse
psicografando o pensamento original. Grespan pensa Marx e é isso
o que interessa. Visto que não
creio que Marx consiga montar o
sistema coerente que requeria seu
projeto político -o que não me
parece impedir uma extraordinária crítica dos procedimentos alienadores do capital feita na base de
uma fantástica torção dos conceitos do idealismo alemão e da economia política clássica-, não peço que um comentário cubra todos os aspectos de uma totalidade
que não existe.
Desse ponto de vista, Grespan
sublinha até o limite os processos
antagônicos das categorias marxistas, preparando o momento em
que intervém a "Aufhebung",
como "ressonância" da lógica
hegeliana. Mas em vez de ressaltar
a tensão, como tenho procurado
fazer, sublinha o sistema. Assim
sendo, parece-me que fotografa
uma parada numa escrita que tanto mais avança quanto mais revela
a impossibilidade desse avanço.
Por isso parece-me que cada releitura de seu livro, merecedor de
um estudo cuidadoso, se não convencer o leitor, por certo fará com
que se torne menos assertivo e
mais preparado para refletir sobre
os problemas filosóficos levantados pela obra de Marx.
O Negativo do Capital
Jorge Luiz da Silva Grespan
Hucitec (Tel. 011/543-0653)
287 págs., R$ 25,00
José Arthur Giannotti é professor de filosofia
da USP e autor de "Trabalho e Reflexão" (Brasiliense), entre outros.
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