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São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2003

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Sérgio e a Itália

O impacto da cultura italiana sobre o historiador Sérgio Buarque de Holanda

LAURA DE MELLO E SOUZA

Em setembro de 2002, o professor italiano Aniello Avella realizou na Universidade Federal de Santa Catarina uma conferência sobre a "Influência Italiana no Pensamento de Sérgio Buarque de Holanda". Nela, revelava a existência de um artigo que o historiador, após estadia de dois anos em Roma (1952-54), publicara numa revista de Siena dois meses antes de voltar ao Brasil. Concebido como introdução a uma espécie de "Antologia Mínima" de contos e ensaios de autores brasileiros, o artigo despertou o interesse do núcleo de tradução do departamento de língua e literaturas estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina, que resolveu, junto com a conferência de Avella, publicá-lo num livrinho. Assim surgiu este "A Contribuição Italiana para a Formação do Brasil", que celebra o centenário de Sérgio e traz subsídios para melhor conhecer a obra de um historiador que, morto há mais de 20 anos, continua a surpreender.
Na introdução, Avella sublinha o impacto da cultura italiana sobre Sérgio, evidente em vários dos escritos da década de 50 e revelado, mais uma vez, no que ora se publica. Ninguém estudou ainda a afinidade entre Sérgio e historiadores italianos como Federico Chabod -fato que já podia ser constatado em "Visão do Paraíso" e que, agora, fica ainda mais claro, sugerindo que, na década de 50, completava-se em Roma um processo formativo iniciado com a estadia alemã do historiador (1929-31).
Tendo sido jornalista, ensaísta e crítico literário, Sérgio já se reconhecia, em 1954, como historiador: "Não sendo hábil para prognósticos, me restringirei aos termos estabelecidos pela minha condição de historiador, isto é, ao exame do passado e, quando possível, do presente, deixando o futuro para os mais hábeis". A originalidade de sua perspectiva histórica pode ser constatada neste texto pequenino, escrito originalmente num italiano simples que, traduzido, soa, na forma, muito diferente do estilo meio barroco e perifrástico do autor.
Só na forma, porque a força do seu pensamento está presente no texto: sintético, destinado a público estrangeiro, mas capaz de aliar informação geral e problematização sofisticada. A idéia do desterro, cara a "Raízes" -os brasileiros são uns desterrados na própria terra- reaparece em "A Contribuição", bem como a de uma trajetória brasileira singular, que o iberismo partilhado com os vizinhos hispano-americanos não aplaca, mas agudiza. Na comparação, portanto, sobrenada o contraste entre América Espanhola e América Portuguesa: idéia chave de "Visão do Paraíso", livro que não estuda, como se afirma amiúde, a capacidade lusitana de mitificar a descoberta mas, ao contrário, o raquitismo desses mitos quando comparados aos espanhóis.
Mesmo singulares, os portugueses -e os brasileiros- não querem romper com a tradição européia: "Isolado entre os seus irmãos do Novo Continente, foi quase sempre fora dele que o Brasil teve de procurar o alimento e o estímulo necessários à sua vida espiritual, quando não pôde encontrá-los em si próprio. Assim, fazendo parte da América, encontra-se ainda ligado, com vínculos poderosos e duradouros, à Europa".
Os vínculos que Sérgio recompõe nesse texto são os que unem Portugal, Brasil e Itália. O caráter mercantil aproxima a expansão e o modelo colonizador portugueses antes das atividades italianas tardo-medievais que das espanholas suas contemporâneas. Ao comparar, o historiador distingue: em Portugal, "a idéia de riqueza não se separava com clareza da noção de propriedade fundiária, como acontecia com genoveses, pisanos e venezianos"; daí o maior apreço lusitano "pelas conquistas territoriais, em comparação com os italianos, para quem era suficiente usufruir dos benefícios econômicos". A presença econômica dos italianos no início de nossa colonização preocuparam Sérgio em mais de uma ocasião, e em 1967 publicou documentos importantes sobre um projeto toscano para o Brasil, iniciativa recentemente enriquecida por pesquisa de Carlos Zeron e Carlos Ziller.
A influência italiana se fez sentir de forma contínua durante todo o período colonial, observa Sérgio -seja na economia, seja na catequese, onde jesuítas como Antonil deixaram marcas. Na segunda metade do século 18, contudo, assumiu contorno específico. "Graças ao contato com os italianos, os portugueses imaginavam poder alcançar, no campo literário, a mesma independência que, nos confrontos com a Espanha, já haviam conquistado no campo político desde 1640. A expressão empolada, retorcida, começa então a ser apresentada como particularidade espanhola: reagir a ela se torna, para muitos, verdadeiro ato de patriotismo".
Fosse por meio da língua, fosse por meio de instituições como as Academias literárias, a cultura italiana possibilitou que se afirmasse aos poucos "um sentimento de maturidade que não tardará a passar das letras à política". Na segunda metade do século 18, foram árcades e italianizantes alguns dos críticos da dominação portuguesa na América: os poetas da inconfidência mineira de 1789 e o da carioca de 1794, Silva Alvarenga.
Reconhecer a filiação européia não impossibilita o surgimento do espírito crítico nem impede a originalidade. Olhar só para Portugal, ou para a Península Ibérica, às vezes mais atrapalha do que ajuda a compreender a nossa história, e os nexos podem não estar onde os procuramos de imediato, ensina o historiador.
Além do argumento central, o texto traz em germe algumas questões caras a Sérgio e que continuam a merecer atenção ainda hoje. Assim, o maior interesse paulista por índios do que por pedras e metais preciosos; a centralidade de São Paulo e Pernambuco na constituição de um processo de autonomia na América Portuguesa; a importância dos jesuítas na formação de uma consciência local e, simultaneamente, na consolidação de valores universais, "católicos, no significado amplo da palavra, e não apenas ibéricos e portugueses".
Louvando-se a iniciativa e agradecendo à UFSC por ter dado a público um texto luminoso, cabe contudo observar que há tropeços na tradução e na edição: nomes próprios, como o do celebérrimo Jerônimo de Albuquerque, não podem permanecer em italiano, e Castiglia, em português, é Castela; há passagens excessivamente literais, sem falar de um ou outro erro; por fim, a carta de Pero Vaz de Caminha merece figurar em edição mais abalizada do que a da editora L&PM, feita sem nenhum cuidado crítico.


Laura de Mello e Souza é professora de história na USP e autora, entre outros livros, de "Norma e Conflito" (UFMG).

A Contribuição Italiana para a Formação do Brasil
Sérgio Buarque de Holanda
Edição bilíngue.
Organização e tradução de Andréia Guerini
Prefácio de Aniello Angelo Avella
Núcleo de tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (Tel. 0/ xx/48/3331-9288)
guerini@cce.ufsc.br
111 pág., R$ 10,00



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