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Sérgio e a Itália
O impacto da cultura italiana sobre o historiador Sérgio Buarque de Holanda
LAURA DE MELLO E SOUZA
Em setembro de 2002, o professor italiano Aniello Avella realizou na Universidade Federal de
Santa Catarina uma conferência
sobre a "Influência Italiana no
Pensamento de Sérgio Buarque
de Holanda". Nela, revelava a
existência de um artigo que o historiador, após estadia de dois
anos em Roma (1952-54), publicara numa revista de Siena dois
meses antes de voltar ao Brasil.
Concebido como introdução a
uma espécie de "Antologia Mínima" de contos e ensaios de autores brasileiros, o artigo despertou
o interesse do núcleo de tradução
do departamento de língua e literaturas estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina,
que resolveu, junto com a conferência de Avella, publicá-lo num
livrinho. Assim surgiu este "A
Contribuição Italiana para a Formação do Brasil", que celebra o
centenário de Sérgio e traz subsídios para melhor conhecer a obra
de um historiador que, morto há
mais de 20 anos, continua a surpreender.
Na introdução, Avella sublinha
o impacto da cultura italiana sobre Sérgio, evidente em vários dos
escritos da década de 50 e revelado, mais uma vez, no que ora se
publica. Ninguém estudou ainda
a afinidade entre Sérgio e historiadores italianos como Federico
Chabod -fato que já podia ser
constatado em "Visão do Paraíso" e que, agora, fica ainda mais
claro, sugerindo que, na década
de 50, completava-se em Roma
um processo formativo iniciado
com a estadia alemã do historiador (1929-31).
Tendo sido jornalista, ensaísta e
crítico literário, Sérgio já se reconhecia, em 1954, como historiador: "Não sendo hábil para prognósticos, me restringirei aos termos estabelecidos pela minha
condição de historiador, isto é, ao
exame do passado e, quando possível, do presente, deixando o futuro para os mais hábeis". A originalidade de sua perspectiva histórica pode ser constatada neste texto pequenino, escrito originalmente num italiano simples que,
traduzido, soa, na forma, muito
diferente do estilo meio barroco e
perifrástico do autor.
Só na forma, porque a força do
seu pensamento está presente no
texto: sintético, destinado a público estrangeiro, mas capaz de aliar
informação geral e problematização sofisticada. A idéia do desterro, cara a "Raízes" -os brasileiros são uns desterrados na própria terra- reaparece em "A
Contribuição", bem como a de
uma trajetória brasileira singular,
que o iberismo partilhado com os
vizinhos hispano-americanos não
aplaca, mas agudiza. Na comparação, portanto, sobrenada o contraste entre América Espanhola e
América Portuguesa: idéia chave
de "Visão do Paraíso", livro que
não estuda, como se afirma amiúde, a capacidade lusitana de mitificar a descoberta mas, ao contrário, o raquitismo desses mitos
quando comparados aos espanhóis.
Mesmo singulares, os portugueses -e os brasileiros- não querem romper com a tradição européia: "Isolado entre os seus irmãos do Novo Continente, foi
quase sempre fora dele que o Brasil teve de procurar o alimento e o
estímulo necessários à sua vida
espiritual, quando não pôde encontrá-los em si próprio. Assim,
fazendo parte da América, encontra-se ainda ligado, com vínculos
poderosos e duradouros, à Europa".
Os vínculos que Sérgio recompõe nesse texto são os que unem
Portugal, Brasil e Itália. O caráter
mercantil aproxima a expansão e
o modelo colonizador portugueses antes das atividades italianas
tardo-medievais que das espanholas suas contemporâneas. Ao
comparar, o historiador distingue: em Portugal, "a idéia de riqueza não se separava com clareza da noção de propriedade fundiária, como acontecia com genoveses, pisanos e venezianos"; daí o
maior apreço lusitano "pelas conquistas territoriais, em comparação com os italianos, para quem
era suficiente usufruir dos benefícios econômicos". A presença
econômica dos italianos no início
de nossa colonização preocuparam Sérgio em mais de uma ocasião, e em 1967 publicou documentos importantes sobre um
projeto toscano para o Brasil, iniciativa recentemente enriquecida
por pesquisa de Carlos Zeron e
Carlos Ziller.
A influência italiana se fez sentir
de forma contínua durante todo o
período colonial, observa Sérgio
-seja na economia, seja na catequese, onde jesuítas como Antonil deixaram marcas. Na segunda
metade do século 18, contudo, assumiu contorno específico. "Graças ao contato com os italianos, os
portugueses imaginavam poder
alcançar, no campo literário, a
mesma independência que, nos
confrontos com a Espanha, já haviam conquistado no campo político desde 1640. A expressão empolada, retorcida, começa então a
ser apresentada como particularidade espanhola: reagir a ela se torna, para muitos, verdadeiro ato de
patriotismo".
Fosse por meio da língua, fosse
por meio de instituições como as
Academias literárias, a cultura italiana possibilitou que se afirmasse
aos poucos "um sentimento de
maturidade que não tardará a
passar das letras à política". Na segunda metade do século 18, foram
árcades e italianizantes alguns dos
críticos da dominação portuguesa
na América: os poetas da inconfidência mineira de 1789 e o da carioca de 1794, Silva Alvarenga.
Reconhecer a filiação européia
não impossibilita o surgimento
do espírito crítico nem impede a
originalidade. Olhar só para Portugal, ou para a Península Ibérica,
às vezes mais atrapalha do que
ajuda a compreender a nossa história, e os nexos podem não estar
onde os procuramos de imediato,
ensina o historiador.
Além do argumento central, o
texto traz em germe algumas
questões caras a Sérgio e que continuam a merecer atenção ainda
hoje. Assim, o maior interesse
paulista por índios do que por pedras e metais preciosos; a centralidade de São Paulo e Pernambuco
na constituição de um processo
de autonomia na América Portuguesa; a importância dos jesuítas
na formação de uma consciência
local e, simultaneamente, na consolidação de valores universais,
"católicos, no significado amplo
da palavra, e não apenas ibéricos e
portugueses".
Louvando-se a iniciativa e agradecendo à UFSC por ter dado a
público um texto luminoso, cabe
contudo observar que há tropeços
na tradução e na edição: nomes
próprios, como o do celebérrimo
Jerônimo de Albuquerque, não
podem permanecer em italiano, e
Castiglia, em português, é Castela;
há passagens excessivamente literais, sem falar de um ou outro erro; por fim, a carta de Pero Vaz de
Caminha merece figurar em edição mais abalizada do que a da
editora L&PM, feita sem nenhum
cuidado crítico.
Laura de Mello e Souza é professora de
história na USP e autora, entre outros livros, de "Norma e Conflito" (UFMG).
A Contribuição Italiana
para a Formação do Brasil
Sérgio Buarque de Holanda
Edição bilíngue.
Organização e tradução
de Andréia Guerini
Prefácio de Aniello Angelo Avella
Núcleo de tradução da Universidade
Federal de Santa Catarina
(Tel. 0/ xx/48/3331-9288)
guerini@cce.ufsc.br
111 pág., R$ 10,00
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