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São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2003

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Século medonho


Áden, Arábia
Paul Nizan
Prefácio de Jean-Paul Sartre
Tradução: Bernardette Lyra
Estação Liberdade (Tel. 0/xx/11/3661-2881)
174 págs., R$ 24,00


O rompimento da amizade entre Sartre e Nizan poderia ser resumido neste trecho de seu prefácio a "Áden, Arábia": "Quanto mais sinistra é a vida, mais absurda é a morte".
Nizan foi a Áden decepcionado com a École Normale Superièure, de Paris. Seu desgosto em relação à academia toma todo o espaço de seu relato sobre sua experiência na Arábia. Vê-se, ali, um francês que, pretendendo negar sua formação burguesa, se refugia no que lhe parece ser o "outro de seu mundo". Ocorre, entretanto, que a vida na colônia termina por ser menos do que a transição esperada. Está lá como uma espécie de preceptor à moda antiga e bem afeita aos valores que ele quer desprezar. Sartre percebe isso e, de maneira confessa, se irrita e escreve o prefácio, após a morte de Nizan, sem condescendência alguma.
O tema que rouba a cena é a impossibilidade de separação entre amizade e filosofia. Nizan havia deixado o meio acadêmico bastante ressentido, e, de outro lado, Sartre se viu abandonado pelo que, em um primeiro instante, parecia ser um ato heróico. Em um segundo momento, percebe a fragilidade da empreitada de Nizan, sobretudo de um ponto de vista crítico. Por essa razão, talvez, seu prefácio adquira um tom autobiográfico que remete à idéia de pensamento como "philia", o que lhe permite dizer, dirigindo-se a Nizan: "Foi preciso muito tempo e que eu compreendesse enfim o meu caminho, para que, sem errar, pudesse agora falar do seu".


As Encruzilhadas do Labirinto (vol. 4)
Cornelius Castoriadis
Tradução: Regina Vasconcellos
Paz e Terra (Tel. 0/xx/21/2255-2327)
280 págs., R$ 29,00


A oposição entre a democracia antiga e a moderna é, para Castoriadis, tema central nessa coletânea. Na terceira parte, certamente a mais filosófica, lembra que a "paidéia", para Péricles, consiste em "viver em e por amor ao belo e à sabedoria". Em contrapartida, na modernidade, "o objetivo coletivo proclamado é certamente a busca da felicidade; felicidade universal que, porém, não é mais que a soma das felicidades privadas". Dessa forma, defende a democracia grega (que restringe ao período que vai dos séculos 8º ao 5º a.C.) para formular uma crítica à idéia moderna de representação. Longe de querer apenas desqualificar o ideal iluminista, seu objetivo é, antes, condenar as estruturas burocráticas de Estado que se justificam pela necessidade de especialização. Nesse ponto, recorre à filosofia antiga e, para questionar a hipervalorização da técnica, recusa o desprezo da "doxa" (opinião) por Platão.
A primeira parte contém debates interessantes, como o travado com Edgar Morin sobre os movimentos dos anos 1960. Aí é fortemente criticada a leitura de Ferry e Renaut ("Pensamento 68"). O argumento principal de Castoriadis é o de que esses dois autores não perceberam que sua análise de 1968 já estava preconizada por expoentes do "estruturalismo francês", como Foucault e Lacan. Mais do que visionários, esses autores representariam uma forma de resistência prévia a questões inéditas que vieram a ocupar o lugar central de Maio de 1968.
Ainda na primeira parte, destaca-se o texto "Entre o Vazio Ocidental e o Mito Árabe", em que se discute o papel da ONU por ocasião da Guerra do Golfo. Numa frase que valeria para hoje, Castoriadis diz: "A ONU não é mais do que um órgão por meio do qual as grandes potências tratam suas divergências [...]. Pode parecer que ela está agindo enquanto valerem os acordos conjunturais entre as potências".


O Único e o Singular Entrevista a Edmond Blattchen
Paul Ricoeur
Tradução: Maria Leonor Loureiro
Ed. Unesp (Tel. 0/xx/11/3242-7171)
81 págs., R$ 13,00


Na entrevista concedida por Paul Ricoeur a Edmond Blattchen, o dilema do marxismo ocidental após a derrocada do Leste Europeu fica claro na resposta sobre o balanço do século 20. Aí, diz Ricoeur: "O medonho século 20, como gosto de dizer, se o fizermos começar em 1914 e de certo modo terminar em 1989 com a queda do Muro de Berlim". No que se refere ao totalitarismo, longe de se alinhar às tradicionais visões maniqueístas, Ricoeur reconhece nas grandes potências ocidentais a responsabilidade pelo nazismo. Quanto a 1968, seu olhar é generoso: ele pensa que a autoridade nunca mais gozou do privilégio da imposição que possuía antes.
Assim, numa sequência de conversas entrecortadas, que variam da tragédia ática às questões políticas mais recentes, está em jogo a avaliação das estruturas de poder no século 20, que, para Ricoeur, tornam o homem mais vulnerável do que a doença e a morte, estas, fragilidades de todos os seres vivos.

THELMA LESSA DA FONSECA

é professora do departamento de filosofia e metodologia das ciências da Universidade Federal de São Carlos.

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