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São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2003

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A magia do fogo

HENRIQUE FLEMING

Quando as águas de Itaipu se precipitam sobre as turbinas ali colocadas, gera-se uma enorme quantidade de energia elétrica. Milhares de quilômetros depois, essa energia é posta à nossa disposição para os confortos do lar moderno. Todo esse processo depende, em várias instâncias, da maior descoberta de Michael Faraday, a indução eletromagnética.
Michael Faraday nasceu em família de poucos recursos: seu pai era um ferreiro. Das escassas notícias sobre sua infância, aprende-se que frequentou uma escola pública, onde aprendeu "os rudimentos da leitura, escrita e aritmética". Num contexto histórico em que ninguém via nada de mal no trabalho infantil, trabalhou, dos 13 aos 21 anos, primeiro como aprendiz e, depois, como funcionário na oficina de encadernação de George Ribeau, na Blanford Street, onde, de alguma maneira e sem ajuda de ninguém se educou. Em uma nota autobiográfica relata: "Foi naqueles livros, após o expediente, que eu encontrei o começo de minha filosofia. Houve dois que me ajudaram particularmente: a "Encyclopaedia Britannica", da qual obtive minhas primeiras noções de eletricidade, e as "Conversas sobre Química", de Mrs. Marcet, que me deram os fundamentos desta ciência".
Devia ser um rapaz extraordinário, pois chamou a atenção de um cliente importante, William Dance, um dos fundadores, para não negar o nome, da Royal Philarmonic Society, que lhe deu um ingresso para uma série de conferências de sir Humphry Davy, o mais famoso químico inglês da época, na Royal Institution. O jovem Faraday deu um golpe de mestre: tomou notas das conferências, redigiu-as, completou-as com esmero e fez uso de toda a sua arte para encaderná-las em um belo volume, que enviou a sir Humphry com um pedido de assistência para que pudesse deixar aquele ofício, que detestava, e dedicar-se à ciência. Davy respondeu imediatamente ao jovem, agradecendo, e, no devido tempo, atendeu a seu pedido, indicando-o para uma vaga recém-aberta no laboratório da Royal Institution.
Sua carta de recomendação diz, num peculiar estilo em que usa a terceira pessoa para referir-se a si mesmo: "Sir Humphry Davy tem a honra de informar aos administradores que achou uma pessoa desejosa de ocupar a posição (...) que vinha sendo de William Payne. Seu nome é Michael Faraday. É um jovem de 22 anos de idade. Na medida em que sir H. Davy pôde observar ou certificar-se, parece adequado para a posição. Seus hábitos parecem bons; sua disposição, ativa e alegre, sua atitude, inteligente".
Faraday foi nomeado então para a Royal Institution, onde permaneceu por toda a sua vida, primeiro, em 1813, como assistente de laboratório e, mais tarde, em 1833, como professor vitalício de química, ocupando a cadeira denominada Fullerian, sem obrigações didáticas.
Não é incomum que autodidatas gostem de ensinar e venham a ser excelentes professores. Enrico Fermi é um exemplo. Como atividade voluntária, Faraday gostava de ensinar e o fazia, como sir Humphry Davis, por meio de séries de conferências, das quais, de longe, a mais famosa foi aquela intitulada "A História Química de uma Vela".
Repetindo a história do próprio Faraday, um jovem físico, William Crookes, mais tarde famoso por suas pesquisas sobre raios catódicos, tomou nota das conferências, que foram depois publicadas como um livro, tornando-se um dos grandes clássicos da educação científica.

Conversas sobre química
As conferências de "A História Química de uma Vela" destinavam-se a crianças, e daí vem uma parte de seu encanto, já que o uso do jargão técnico é, por isso, totalmente excluído. Faraday conversa sobre a química da vela, assim como Mrs. Marcet conversara com ele, nas páginas do livro que o educara.
A vela de estearina, em 1860, data das conferências, já tinha atingido sua forma final, que mantém até hoje. É um instrumento perfeito, que atravessou o período das maiores revoluções tecnológicas sem sofrer nenhuma alteração. Sua aparência simples, minimalista, esconde um sistema complexo em que todas as partes desempenham funções, coordenadas para o objetivo final: produzir luz. Considere, por exemplo, sua estrutura vertical, de superfície cilíndrica ou levemente cônica. Quando aceso, o pavio derrete a estearina e, com isso, destruiria a estrutura de sustentação da vela, não fosse pelo fato de que, ao esquentar o ar no topo da vela, provoca sua ascensão, o que cria, por sua vez, um "vento" de ar frio que sobe, tocando as paredes laterais da vela, esfriando-as e mantendo-as sólidas.
Não só, mas, na região mais crítica, no topo da vela, ao pé do pavio, a ação resfriadora desse "vento" mantém uma sutil parede fria de estearina que marca os limites de uma região côncava, uma bacia, onde fica armazenada a estearina liquefeita. Essa parede cilíndrica impede que o líquido vaze, escorrendo pela parede externa da vela, o que iria diminuir a eficiência da ação do vento necessário para manter a estrutura sólida.
Assim começam as conferências, com uma análise da forma da vela e sua função, de velas para usos particulares, com as velas de mineiros, que eram produzidas por eles mesmos, individualmente, de sebo, no menor tamanho possível, pois se acreditava que velas bem pequenas diminuíssem o perigo de explosão dos gases confinados nas minas de carvão, o terrível "grisu".
Faraday passa depois a um estudo da capilaridade: como faz a vela para levar o combustível até a chama? Daí passa a uma maravilhosa discussão desse mais fascinante dos fenômenos, o fogo, a chama, sua perpétua dança-mudança, e quanto essa beleza é devida à precária capacidade de resolução temporal de nossa vista. Outras formas de combustão, sem chama, são apresentadas, e aprende-se que o material cuja queima produz a luz mais próxima da do dia é o cálcio, em suas formas mais comuns, denominadas em inglês "lime".
A luz do cálcio, por essa propriedade, foi usada, durante muito tempo, no teatro, vindo daí a expressão "limelight", literalmente "luz do cálcio", mas, figuradamente, significando o próprio teatro, a magia da ribalta. O imortal filme de Chaplin sobre a irresistível atração do palco, intitulado precisamente assim, "Limelight", teve em português uma tradução apropriada, "Luzes da Ribalta". Infelizmente essa belíssima passagem das conferências é perdida na tradução, que, de resto, é extremamente competente.
Pouco a pouco, Faraday vai passando do concreto da vela à linguagem essencial da química: em busca dos elementos. São apresentados, como produtos da dissociação da água, sempre presente na combustão da vela, o hidrogênio e o oxigênio (bem como o carbono e o nitrogênio), o que o leva ao ar e, como conclusão apoteótica, à analogia entre a respiração e a combustão da vela.
Não há, em todo o livro, já não digo nenhuma fórmula, mas nenhum uso de matemática que não seja uma simples operação de contagem ou a estrutura lógica requerida pela própria linguagem quotidiana. E, no entanto, uma lógica poderosíssima conecta a sequência de experiências que vão desvendando os mistérios que o autor vai propondo, com suma maestria. Nada é imposto: tudo é perguntado e respondido experimentalmente. Cada experiência, por sua vez, sugere novas perguntas, e assim segue o texto, numa fiel imitação da vida de um investigador da natureza. Se existe algum texto superior a esse para uma introdução à ciência, não o encontrei, em meus 50 anos de interesse pelo assunto.
Complementam o volume as conferências de uma outra série, intitulada "As Forças da Matéria", também de excelente qualidade, mas que, justapostas à magnificência da primeira série, ficam um pouco diminuídas. Talvez porque lhes falte a magia do fogo...


Henrique Fleming é professor do Instituto de Física da USP.

A História Química de uma Vela. As Forças da Matéria
Michael Faraday
Tradução: Vera Ribeiro
Contraponto (Tel. 0/xx/21/3882-9041)
222 págs., R$ 30,00



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