São Paulo, sábado, 09 de fevereiro de 2002

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Correspondência silenciosa

Silviano Santiago comenta as cartas trocadas entre Mário de Andrade e Tarsila do Amaral

SILVIANO SANTIAGO

Correspondência Mário de Andrade & Tarsila do Amaral
Organização de Aracy Amaral
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4008)
240 págs., R$ 30,00

 Pra que usar de tanta educação
Pra destilar terceiras intenções?
Cazuza

Estamos diante da "Correspondência Mário de Andrade & Tarsila do Amaral", volume organizado, prefaciado e anotado por Aracy Amaral. Para quem leu o indispensável e esgotado "Brasil: Primeiro Tempo Modernista -1917/ 29", coletânea de recortes de jornal e artigos inéditos escritos na década de 1920, ou para quem tenha lido a recente e empenhada biografia intelectual "Tarsila do Amaral, a Modernista", de Nádia B. Gotlib, ou a segunda edição do sofisticado e injustiçado "A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars", de Alexandre Eulálio, uma coisa fica clara. Trata-se de correspondência silenciosa.
Na literatura ocidental é a mais silenciosa das correspondências a que tive acesso. Equivale ao célebre encontro desencontrado de 1941 entre os físicos Niels Bohr e Werner Heisenberg, que foi objeto de peça escrita por Michael Frayn intitulada "Copenhagen". É preciso fazer ficção em cima das cartas para que a famigerada burguesia letrada -e não só os especialistas de plantão- possa ter interesse pela sua leitura e desfrutá-las. Chegou a hora de os herdeiros intelectuais de Mário se darem conta de duas "lapalissadas" (para usar o elegante galicismo, caro a Mário). Primeira: são biografias (de preferência excelentes) que justificam a publicação da correspondência de um artista. Segunda: formam-se equipes para que se trabalhe em equipe. Sua falta, sua palma.
A organizadora da correspondência detectou o duplo problema: silêncio entre os correspondentes e falta duma biografia, embora ainda se mostre avessa ao trabalho em equipe. Há mais palavras nas notas explicativas do que nas cartas. Haveria outro recurso para o leitor poder acompanhar as "segundas intenções" (carta de 12/ 12/1922) dos correspondentes silenciosos e educados? Há mais palavras nas duas introduções e nos apêndices do que nas cartas. Seria a margem mais importante do que a correspondência propriamente dita? As duas perguntas assinalam que estamos a léguas do clima amigável, intelectual e festivo das cartas de Mário para Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Miranda. Léguas estamos da troca de cartas com a discípula Oneida Alvarenga. Troca de cartas, de sentimentos e emoções. Troca de idiossincrasias e idéias.
Na correspondência de Mário e Tarsila, a curiosidade do leitor comum é espicaçada. Tudo no entanto conspira contra o seu prazer e aprendizado. Menos as notas explicativas. Muitas delas são paráfrase nada sutil, redobrando o tom "kitsch" do texto que acabamos de ler (piores exemplos: nota 4, pág. 53; nota 10, pág. 69). Que vidas ricas, meu Deus! -e, no entanto, falta.
Falta o quê? Mário, o amigo: não há o bate-papo descontraído à soleira da janela da carta, que lembra quadro que a família Amaral tanto admirava: "O Violeiro", de Almeida Júnior. Mário, o leitor: não há os feiticeiros ensinamentos, que fluem com a devoção de quem acredita na "caritas" cristã e a pratica. Mário, o cabotino: não há as palavras sábias, semelhantes às de Sêneca na sua correspondência, que comentam o comportamento ímpar do missivista, expondo o que deve servir de exemplo para os semelhantes. Mário, o mestre: não há como detectar na superfície da carta a história subterrânea do modernismo, que tantas vezes o remetente faz questão de reescrever ou aclarar. Mário, o artista crítico: não há esclarecimentos fundamentais sobre a gênese de poemas ou de textos tão capitais quanto "Macunaíma", como não há nenhum resumo antecipatório de ensaio a ser escrito.
Há o silêncio. Compulsivo. Há o silêncio, que podemos mandar de volta, num jogo heurístico, às grandes correspondências plenas. Ao contrário do que se pensa, Mário só era dado a um "tête-à-tête" com os amigos grã-finos e a gente do povo. Mário, o nosso Luchino Visconti. Carlos Drummond pressentiu isso e o escreveu em "A Lição do Amigo": "A bem dizer, e paradoxalmente, jamais convivi com Mário de Andrade a não ser por meio das cartas que nos escrevíamos". Quando Mário se transferiu em 1938 para o Rio, o mineiro Drummond já ali estava desde 1934. Anota Drummond: "nos vimos assiduamente [durante quatro anos" e menos ainda nos dedicamos à fraterna conversa, devido a esses tapumes que o trabalho (só ele?) costuma levantar entre pessoas que se estimam cordialmente". É preciso ler o parêntese desconstrutor do trabalho como desculpa esfarrapada na vida moderna, sucedâneo do "sinal fechado" musicado por Paulinho da Viola. Tanto é preciso, que Drummond volta à questão, lembrando a fase em que Mário se "sentiu ferido" pelo amigo, sem que desse ensejo a explicações. Conclui Drummond: "Nada me escreveu do que sentia e por que o sentia". Estremecimento na amizade equivale a silêncio de um e a perda de diálogo franco.



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