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Correspondência silenciosa
Silviano Santiago comenta as cartas trocadas
entre Mário de Andrade e Tarsila do Amaral
SILVIANO SANTIAGO
Correspondência Mário
de Andrade & Tarsila
do Amaral
Organização de Aracy Amaral
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4008)
240 págs., R$ 30,00
Pra que usar de tanta educação
Pra destilar terceiras intenções?
Cazuza
Estamos diante da "Correspondência Mário de Andrade & Tarsila do
Amaral", volume organizado, prefaciado e anotado por Aracy Amaral.
Para quem leu o indispensável e esgotado "Brasil: Primeiro Tempo Modernista -1917/ 29", coletânea de recortes
de jornal e artigos inéditos escritos na
década de 1920, ou para quem tenha
lido a recente e empenhada biografia
intelectual "Tarsila do Amaral, a Modernista", de Nádia B. Gotlib, ou a segunda edição do sofisticado e injustiçado "A Aventura Brasileira de Blaise
Cendrars", de Alexandre Eulálio, uma
coisa fica clara. Trata-se de correspondência silenciosa.
Na literatura ocidental é a mais silenciosa das correspondências a que
tive acesso. Equivale ao célebre encontro desencontrado de 1941 entre os
físicos Niels Bohr e Werner Heisenberg, que foi objeto de peça escrita por
Michael Frayn intitulada "Copenhagen". É preciso fazer ficção em cima
das cartas para que a famigerada burguesia letrada -e não só os especialistas de plantão- possa ter interesse
pela sua leitura e desfrutá-las. Chegou
a hora de os herdeiros intelectuais de
Mário se darem conta de duas "lapalissadas" (para usar o elegante galicismo, caro a Mário). Primeira: são biografias (de preferência excelentes) que
justificam a publicação da correspondência de um artista. Segunda: formam-se equipes para que se trabalhe
em equipe. Sua falta, sua palma.
A organizadora da correspondência
detectou o duplo problema: silêncio
entre os correspondentes e falta duma
biografia, embora ainda se mostre
avessa ao trabalho em equipe. Há
mais palavras nas notas explicativas
do que nas cartas. Haveria outro recurso para o leitor poder acompanhar
as "segundas intenções" (carta de 12/
12/1922) dos correspondentes silenciosos e educados? Há mais palavras
nas duas introduções e nos apêndices
do que nas cartas. Seria a margem
mais importante do que a correspondência propriamente dita? As duas
perguntas assinalam que estamos a léguas do clima amigável, intelectual e
festivo das cartas de Mário para Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade e Murilo Miranda. Léguas
estamos da troca de cartas com a discípula Oneida Alvarenga. Troca de
cartas, de sentimentos e emoções.
Troca de idiossincrasias e idéias.
Na correspondência de Mário e Tarsila, a curiosidade do leitor comum é
espicaçada. Tudo no entanto conspira
contra o seu prazer e aprendizado.
Menos as notas explicativas. Muitas
delas são paráfrase nada sutil, redobrando o tom "kitsch" do texto que
acabamos de ler (piores exemplos:
nota 4, pág. 53; nota 10, pág. 69). Que
vidas ricas, meu Deus! -e, no entanto, falta.
Falta o quê? Mário, o amigo: não há
o bate-papo descontraído à soleira da
janela da carta, que lembra quadro
que a família Amaral tanto admirava:
"O Violeiro", de Almeida Júnior. Mário, o leitor: não há os feiticeiros ensinamentos, que fluem com a devoção
de quem acredita na "caritas" cristã e
a pratica. Mário, o cabotino: não há as
palavras sábias, semelhantes às de Sêneca na sua correspondência, que comentam o comportamento ímpar do
missivista, expondo o que deve servir
de exemplo para os semelhantes. Mário, o mestre: não há como detectar na
superfície da carta a história subterrânea do modernismo, que tantas vezes
o remetente faz questão de reescrever
ou aclarar. Mário, o artista crítico: não
há esclarecimentos fundamentais sobre a gênese de poemas ou de textos
tão capitais quanto "Macunaíma", como não há nenhum resumo antecipatório de ensaio a ser escrito.
Há o silêncio. Compulsivo. Há o silêncio, que podemos mandar de volta,
num jogo heurístico, às grandes correspondências plenas. Ao contrário
do que se pensa, Mário só era dado a
um "tête-à-tête" com os amigos grã-finos e a gente do povo. Mário, o nosso Luchino Visconti. Carlos Drummond pressentiu isso e o escreveu em
"A Lição do Amigo": "A bem dizer, e
paradoxalmente, jamais convivi com
Mário de Andrade a não ser por meio
das cartas que nos escrevíamos".
Quando Mário se transferiu em 1938
para o Rio, o mineiro Drummond já
ali estava desde 1934. Anota Drummond: "nos vimos assiduamente [durante quatro anos" e menos ainda nos
dedicamos à fraterna conversa, devido a esses tapumes que o trabalho (só
ele?) costuma levantar entre pessoas
que se estimam cordialmente". É preciso ler o parêntese desconstrutor do
trabalho como desculpa esfarrapada
na vida moderna, sucedâneo do "sinal fechado" musicado por Paulinho
da Viola. Tanto é preciso, que Drummond volta à questão, lembrando a
fase em que Mário se "sentiu ferido"
pelo amigo, sem que desse ensejo a
explicações. Conclui Drummond:
"Nada me escreveu do que sentia e
por que o sentia". Estremecimento na
amizade equivale a silêncio de um e a
perda de diálogo franco.
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