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A superação do drama
Uma reflexão sobre a dramaturgia do século 20
SÉRGIO DE CARVALHO
Teoria do Drama Moderno
Peter Szondi
Tradução: Luiz Sergio Repa
Cosac e Naify (Tel. 0/xx/11/3218-1444)
185 págs., R$ 39,00
Poucos livros são tão imprescindíveis
para os estudos teatrais como "Teoria do
Drama Moderno", publicado em 1956,
mesmo ano da morte de Bertolt Brecht.
Seu critério de compreensão do modernismo é radical. Por isso tão mobilizador.
Segundo Peter Szondi, a dramaturgia
moderna não foi só aquela que encenou
novos assuntos, num quadro de crise da
ordem burguesa, dando relevo a questões
como a incomunicabilidade ou as lutas
sociais. Foi sobretudo a que procurou
converter esses assuntos em novas formas. Moderna foi a dramaturgia que realizou a crítica das formas anteriores, numa busca de superação histórica do padrão "dramático". Para usar o nome certo, moderna foi a dramaturgia que se voltou para a pesquisa épica.
Como o padrão dramático continua
hegemônico até hoje, e mesmo levando
em conta que muitas das formalizações
épicas modernistas acabaram sendo incorporadas dentro de um certo cânone
moderno-conservador, coisa que o recorte de Szondi, entre 1880 e 1950, não
permite avaliar, seu livro continua sendo
de inestimável valor. É uma ferramenta
de precisão que serve, com alguns ajustes
de bitola, para a reflexão sobre toda a dramaturgia do século 20. É um estímulo à
prática da invenção formal e permite a revisão de suas próprias unidades de medida, o que significa dizer que ele nos dá
meios de avaliar quais experiências épicas continuam progressistas (a palavra
correta ainda é essa!) e quais das atuais
podem avançar em relação à tradição.
O leitor brasileiro de Anatol Rosenfeld,
em especial de "O Teatro Épico" (1965),
já conhecia, em parte, a obra de Szondi.
Ao descrever os gêneros literários tradicionais, para depois utilizá-los como categorias de transição, Rosenfeld repõe
muitos dos procedimentos antidramáticos utilizados desde o teatro grego, numa
larga desmistificação de que a peça boa é
a que desenvolve um conflito interpessoal.
Desde o Renascimento, o modelo dramático impôs ao teatro o diálogo com
tensão emocional, as personagens individualizadas por particularidades morais, a
cor local, a autoconsciência do discurso.
Aboliu apartes, monólogos, coros, e tudo
o que fosse contra o caráter absoluto da
cena. O chamado gênero sério, depois
"drama", então revolucionário, pôs no
fundo da cena as nobres virtudes para dar
lugar à vontade dos "homens comuns",
ocultando o fato de que a suposta universalidade era uma projeção de classe. Do
embate entre o "dever" da honra aristocrática e o novo "querer" burguês, nos
termos de Goethe, a vontade livre saiu como a heroína da nova era.
Problemática formal
Para a "Teoria do Drama Moderno" é
somente a partir da superação do drama
como problemática formal que podemos
pensar o sentido moderno do teatro. Essa
escolha poderia parecer "formalista" caso Szondi não deixasse claro seu projeto
anti-regressivo. Nela se vê um gosto materialista, e algo fenomenológico, pelo
que realmente se mostra, pelas palavras,
atos e enquadramentos da peça. E decorre da constatação lukacsiana de que a forma é conteúdo. Mais do que isso, a forma
é um conteúdo mais "eloquente" do que
os enunciados.
A forma do drama do século 19 não é,
portanto, simbolicamente neutra, mas
corresponde a uma articulação social.
Assim como fizeram Lukács, Benjamin,
Adorno -herdeiros de Hegel ao aplicar
o método dialético à estética-, Szondi
nos faz ver que superar o "drama" é superar uma elaboração histórica. Suas exigências técnicas são exigências existenciais e seu modo de ser traduz um precipitado da vida social de uma época. Para
o crítico que examina os textos do passado, na percepção desses movimentos históricos, interessa estudar os pontos em
que os "enunciados da forma" entrem
em contradição com os "enunciados do
conteúdo".
O processo do teatro moderno tem início quando os grandes dramaturgos do
final século 19 -Ibsen, Strindberg,
Hauptmann, Maeterlinck, Tchekov-
tentaram representar coisas irrepresentáveis dentro das medidas do dialogismo
dramático. Desejando pôr no palco novos assuntos, estranhos às temporalidades concentradas e talvez só possíveis de
serem partilhados na forma extensa do
romance, eles se defrontaram -com
consciência artística surpreendente-
com aquilo que Szondi chamou de "crise
do drama".
A geração da "crise do drama" parece
ter percebido que a relação dramática,
com seu pressuposto de mostrar sujeitos
autoconscientes, caducava num mundo
marcado por relações de coisificação, de
objetualização das pessoas. Mas o que fazer, se a convicção da "impossibilidade
do drama" ainda não se acompanhava de
uma nova prática?
No prefácio à peça "Senhorita Júlia", o
dramaturgo August Strindberg discute a
dificuldade histórica com uma imagem
bíblica: "Não tendo sido inventada nenhuma forma moderna para o novo conteúdo, o vinho novo fez rebentar as velhas pipas". Antes da rebentação, Strindberg sabia que, para preparar um novo
teatro, era preciso "continuar a escrever e
armazenar provisões, preparando o repertório do futuro".
Szondi destaca que, nesses autores, o
recurso épico ainda não surge como forma e aparece disfarçado de elemento de
assunto. A narração é introduzida por estratégias que permitem descolamentos
do tempo presente da ação: relatos acidentais, rememorações inesperadas,
confissões a interlocutores que não podem ouvir a confissão, visitas que querem uma explicação etc. A cena precisava
de pretextos realistas para suportar os
desvios do conflito, sem que fossem derrubadas as paredes da casa burguesa ou
subvertida a sucessividade causalista das
ações.
Na peça "John Gabriel Borkman", Ibsen tentou representar anos de vida dissipada dentro de um sótão. Suas personagens, porém, só podiam nomear as durações passadas, numa autoconsciência
inativa que conspira para a ruína do drama. Em Strindberg vemos em cena criaturas exiladas na própria interioridade.
Não vivem no tempo empírico da relação
com o outro. Personagens que têm maior
dimensão "intra-subjetiva" do que "intersubjetiva". Em Tchekov, os tipos patéticos vivem num "entretanto", sonhando
com a pátria perdida, entre o passado e o
futuro. Seu processo de remediamento
da épica em assunto acontece na medida
em que as exclamações não encontram
eco, numa polifonia de auto-análises resignadas. Sem interlocutores modificáveis, não existe ação dramática. A desdramatização está em curso. "As Três Irmãs"
parece uma bebedeira coletiva em que a
solidão individual é absorvida pela solidão coletiva, numa comédia de desesperos tagarelados.
Já no drama social de Hauptmann a dificuldade histórica será representar as relações extra-subjetivas. Como mostrar
em cena os homens alienados do presente, homens objetualizados, homens tornados coisas por determinações exteriores e, ao mesmo tempo, querer manter o
princípio dramático da autodeterminação, da ação emanada da vontade autoconsciente?
Alguma coisa estaria errada enquanto
uma rebelião de tecelões na Silésia tivesse
que ganhar a cena com os recursos da
emocionalidade "intersubjetiva".
Sem que a cena pudesse ser descontínua, saltar no tempo, sem que pudesse
romper com o presente imediato e causalista -o que ocorreu nos experimentos
modernistas posteriores-, os autores do
período da "crise do drama" criaram situações em que a dimensão narrativa
emergia de objetualizações localizadas,
travestidas de drama para que fossem toleradas pela estrutura ficcional. Era um
começo experimental. Mas a contraposição entre sujeito e objeto -característica
épica que permite apontar as implicações
sociopolíticas da história- não constituía o todo da forma. E enquanto a dimensão épica não se configurasse como
forma, as imposições do drama (e sua
ideologia constitutiva) continuariam
subvertendo muitas das intenções temáticas do autor.
É preciso dizer em favor dos dramaturgos da "crise do drama" que sua prioridade era revelar novos assuntos, e não fazer
a manutenção do modelo dramático. Isso
os diferencia daqueles outros que tentaram, como programa estético, buscar
formas preservacionistas da dramática.
Num de seus estudos, Szondi descreve
essas "tentativas de salvamento" do drama, observáveis em certo naturalismo
que heroicizou e, portanto, aburguesou
personagens do proletariado, como se a
reificação não existisse para a toda sociedade, ou também observáveis no chamado "drama conversação", gênero das peças de tese em que personagens ilustradas falam de modo ilustrado sobre assuntos da moda com os quais não têm compromisso existencial.
A permanência de muitas dessas formas conservadoras no teatro atual, sem
que sejam utilizadas de modo produtivo,
como fizeram Sartre e Beckett com a técnica do "drama de confinamento", indica
a vigência de uma prática em que a aparência de modernidade oculta uma oposição real ao processo histórico.
As formas modernas
O que se lê de mais importante nos estudos de Szondi é uma questão poucas
vezes nomeada pelo autor. De modo
complementar ao critério do avanço formal, ela pode ser considerada como parâmetro importante para a avaliação das
tentativas modernistas. Refiro-me à procura de uma relação crítica com a ordem
social que se modifica.
O mundo da mercadoria, do trabalho
alienado, das relações falsificadas e do
isolamento imposto provocou, nos autores "clássicos" do teatro moderno, o sentimento de que a vida já não vive, de que
as relações não se resolvem pela vontade
dos indivíduos, de que o diálogo está
comprometido. E a melhor dramaturgia
procurou se desidentificar das imposturas sociais. Ou pelo simples retrato crítico
ou pela prática revolucionária.
Mesmo de dentro da engrenagem das
mercadorias teatrais, os enganos do projeto liberal se tornavam cada vez mais
evidentes. A revolução nacional se revertia em luta imperialista, a revolução industrial em exploração das massas, a revolução democrática em manifestações
autoritárias da classes endinheiradas. O
melhor do teatro moderno foi aquele que
procurou dar respostas formais a essas
questões, procurando imagens críticas da
crise burguesa.
Nos anos 20 e 30, época das "tentativas
de solução", os homens de teatro trabalharam para realizar superações, como
prática e conceito. A temática épica se
converteu em forma, por intermédio de
autores modernistas como Toller, Brecht,
Pirandello, Tornthon Wilder. Entre os
modelos discutidos por Szondi, um encenador, Erwin Piscator, que foi dos primeiros a abrir o palco dramático à cidade
convulsionada pela revolta social, mediante recursos cenográficos. Conseguiu,
assim, "desabsolutizar" a ficção ao mostrá-la como parte crítica de um todo.
Aquilo que Piscator e outros fizeram em
cena, assumindo o "teatro em sua realidade de teatro", instaurando disjunções
temporais da ação, criando descontinuidades e pontos de vista explicitados, foi
comum aos dramaturgos do período.
Não foi só Brecht que fez a aposta de
que o mundo da reificação social só poderia ser compreendido se a cena não
ocultasse seus mecanismos de objetualização. A revelação de procedimentos se
tornou, para todos, muito mais do que
exercício virtuosístico de linguagem. Foi
a tentativa de aproximar materialmente o
teatro da vida.
Peter Szondi encerra sua "Teoria do
Drama Moderna" analisando as obras de
autores como Arthur Miller e Thornton
Wilder, dramaturgos norte-americanos
que buscaram formas de representar o
próprio tempo, ao justapor num espaço
heterogêneo gerações de uma pequena
cidade do interior ou de uma família que
celebra o Natal. Seu gosto pelos experimentos épicos dos dramaturgos americanos, no entanto, não distrai o leitor do fato de que seu livro foi escrito em diálogo
direto com a obra de Bertolt Brecht.
Paradoxalmente, o pequeno ensaio dedicado a Brecht, apesar de perfeito em
sua concisão, é quase dispensável no conjunto do livro. Se na parte dedicada ao
poeta alemão sua análise se comporta de
modo tão "econômico", talvez seja porque, de certa forma, toda a "economia"
teórica de Szondi é brechtiana. Brecht
sintetiza o espírito do modernismo em
sua forma mais avançada, a julgar por todos parâmetros da "Teoria do Drama
Moderno". Com o dado complementar
de que as formas épicas desenvolvidas
por Brecht impõem aos encenadores de
hoje atualizações dos assuntos e, portanto, delas próprias como forma, numa renovação de sua perspectiva histórica. O
que é isso senão reflexão dialética tornada ação material?
Brecht e Szondi realizaram trabalhos
cujo tema não está só no enunciado de assunto, mas na própria forma crítica de
construir a teoria, que se oferece como
um modelo processual de reflexão sobre
as condições de desenvolvimento do teatro moderno. O mundo da dramaturgia
não é o mesmo depois deles. Foi um
grande início para o teatro dialético.
Sérgio de Carvalho é dramaturgo, diretor integrante da Companhia do Latão e professor de artes cênicas na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp).
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