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Continuar a tradição
FELIPE CHAIMOVICH
"Ernesto de Fiori", de Mayra Laudanna, explicita o estado
atual da prosa sobre o homenageado (1884-1945) e sua obra.
Trata da recepção do pintor e escultor no Brasil, e como dele foi
construída uma imagem por escritos e relatos. Conclui-se com
uma biografia baseada em pesquisa metódica em arquivos documentais. Contudo a autora não interpreta o legado do artista.
O livro resulta de tese de doutorado defendida no departamento de filosofia da USP. Contribui para uma visão imparcial
do assunto tematizado por meio do rigor terminológico advindo da subordinação constante do texto às referências citadas.
A relevância do estudo justifica-se pelo quiproquó reinante
entre 1946 e 1975. Segundo a autora, durante o período, repetem-se as teses de uma publicação de Gerda Brentani, de 1946,
sobre De Fiori, morto um ano antes: "Os textos de estudiosos
que se seguem a ela, ao considerarem o artista na Europa, ou a
ampliam ou a abreviam na inclusão de novas idéias, como o faz,
por exemplo, Bardi. De 1947 a 1974 cada autor, ao se apropriar
do texto de Gerda, o tem como modelo, ainda que o nome da
autora possa não ser mencionado. A autoridade do texto de
Gerda provém de sua a amizade a de Fiori".
De Fiori viveu no Brasil apenas entre 1936 e 1945, ano em que
morreu. Veio da Alemanha em visita à família e, como estava
em posição marginalizada pelo nazismo ascendente, acabou
por ficar na América, quando irrompeu a Segunda Guerra
Mundial.
Assim, o escrito de Gerda Brentani é analisado como modelo
predominante na interpretação do nexo entre a fase européia e
a brasileira. Mas, como mostra o terceiro capítulo, várias das
posições de Gerda Brentani são parciais, seja por escassez de base documental, seja pelos tons modificados pela relação pessoal
de amizade.
Ernesto de Fiori nasceu em 1884, provavelmente em Roma. A
primeira referência como pintor coincide com sua ida para a
Alemanha, em 1904. No início da carreira, aproximou-se do estilo do simbolista suíço Ferdinand Hodler (1853-1918).
Durante a Primeira Guerra, encontra-se com o nascente dadaísmo em Zurique: "De Fiori também quer uma arte moderna; todavia não aceita como "arte" os trabalhos que os dadaístas
realizam. Em outubro (de 1918), opondo-se aos dadaístas, em
parte à introdução de Jollos, publica "Von der Neuer Kunst" ("Da
Nova Arte'), artigo no qual (...) não aceita como arte as "brincadeiras" dos dadaístas, tampouco a arte que "escorre entre os dedos", referindo Picasso e seus "medíocres" seguidores, e os "borrões à maneira de Kandinski". Em dezembro, Jollos publica artigo criticando de Fiori; naturalmente defendendo Kandinski,
Arp, Klee, Picasso".
O embate com a arte moderna destaca-se entre os escritos de
De Fiori entre as duas guerras. Sua posição é conservadora em
comparação com os dadas.
Vive na Alemanha desde 1920 e participa do debate expressionista. Tanto em pintura como em escultura, pratica uma continuidade do simbolismo, manifesta no apego à figuração construída pelos rastros da mão do artista criador.
Interpreta a própria posição como defesa da tradição, acusando de decorativismo toda arte não-figurativa: "Continuar a tradição", como escreve em artigo de 1918, ou considerar as "características" próprias da arte "de todas as grandes épocas de
cultura", como está nesse artigo de 1939, não significa prosseguir com as descobertas plásticas das obras passadas ou segui-las; deve-se considerar que a arte não existe sem história, sendo,
assim, eterna. Além disso, não é possível fazer arte distanciando-se categoricamente de "qualquer representação", do contrário se faz artesanato, "um belo tapete ou uma decoração de parede, isto é, abstracionismo".
As diretrizes culturais do nazismo implementadas desde 1933
consideram o modernismo de De Fiori de média periculosidade. Obras suas são listadas como arte degenerada e retiradas da
exibição pública em museus da Alemanha, mas não chegam a
ser exibidas na mostra coletiva "Arte Degenerada".
É neste contexto que desembarca na rua Groenlândia o viajante de 1936. Pretende demorar-se pouco com a mãe e o irmão.
O raro comércio de arte em São Paulo faz com que ensaie mudança para os EUA.
"Através de cartas, De Fiori recebe algumas informações sobre seu ateliê de Berlim, que possivelmente foi desalugado em
1939. No final deste ano, o artista se desfaz desse ateliê, como
seu advogado comunica à Gau Berlin, em fevereiro de 1940,
acrescentando: "Er lebt in Brasilien" (Ele vive no Brasil).'
Os três primeiros capítulos do livro mostram o artista em solo
brasileiro. Como a biografia está no final, o leitor fica sem saber
da existência anterior de De Fiori à sua chegada por aqui.
Em "Recepção da Obra de Ernesto de Fiori no Brasil", a autora aborda o período entre 1936 e 1945, quando o emigrado europeu convive com a elite paulistana, interage com os raros modernistas locais e repercute na imprensa. São justapostos textos
de Menotti del Picchia, Cenni, Sérgio Milliet, Mário de Andrade, Luis Martins e da colunista Odette. A imparcialidade interpretativa de Mayra Laudanna equaliza os discursos numa prosa
uniforme.
O capítulo seguinte, "Divulgação da Obra de Ernesto de Fiori", tematiza a figura histórica após o falecimento. A valorização
crescente do aspecto modernista do europeu no Brasil é visível
ao longo dos anos 50, sedimentando-se a fama a partir da década seguinte. Como escreve o crítico Luis Martins, em 1963: "Esse esquecimento é injusto, mas eu julgo encontrar para ele uma
explicação: De Fiori morreu antes do tempo. A valorização da
arte moderna, no Brasil, é coisa muito recente; só agora, talvez
de uns dez anos para cá, se tanto, o público vem-se interessando
por ela".
Segue-se a análise da imagem construída pelos discursos no
capítulo "Lugares Comuns". O texto de Gerda Brentani é tomado como base do sentido dominante e comparado à posição de
Walter Zanini em 1975, por ocasião da retrospectiva organizada
pelo MAC-USP.
O livro encerra-se com a biografia crítica de Ernesto de Fiori.
Ao comparar o debate anterior com pesquisa contemporânea
rigorosa, Mayra Laudanna redimensiona nossa visão do artista
ítalo-austríaco.
Felipe Chaimovich é crítico de arte da Folha.
Ernesto de Fiori
Mayra Laudanna
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4156)
364 págs., R$ 88,00
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