São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

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Para o historiador inglês Charles Boxer, histórias brasileira e portuguesa não podem ser tratadas separadamente
O século agreste

EVALDO CABRAL DE MELLO

Charles Ralph Boxer (1904-2000), morto, quase centenário, em abril passado, realizou na segunda metade do século 20 o grande projeto concebido, nos primeiros anos do 19, por seu compatriota Robert Southey, o primeiro brasilianista. Como se não lhe bastasse o triunfo obtido como poeta, Southey, de visita em Lisboa a um tio capelão da feitoria inglesa, planejou escrever a história de Portugal e do seu império ultramarino. Propósito que só realizou pela metade, com os três alentados tomos da "História do Brasil", embora recolhesse boa quantidade do material indispensável à redação da história de Portugal na Europa e na Ásia, como indica o inventário da sua biblioteca.
A Boxer caberia realizar o ambicioso plano, não em consequência de uma decisão de princípio, como no caso de seu antecessor, mas como resultado final de um longo périplo historiográfico que lhe permitiu abranger, imparcialmente, da epopéia à picaresca, a presença lusitana no mundo. Seu conhecimento das fontes éditas e manuscritas relativas à expansão portuguesa representa algo de literalmente assombroso, façanha que não poderia ser repetida não fossem os recursos que a informática veio recentemente colocar à disposição do historiador, mas de que Boxer não chegou a se beneficiar. A essa capacidade de trabalho, contudo, estavam longe de corresponder os sinais exteriores do rato de arquivo; e se prova melhor não houvesse desta asserção, bastaria citar a aventurosa existência que levou na mocidade. Não há dúvida de que, para Boxer, o tempo era uma mercadoria de oferta infinitamente elástica.
Na sua obra, caberia mencionar de início os livros que dedicou a grandes temas como a história de Macau (sua primeira paixão historiográfica), a presença lusitana no Japão, as relações comerciais luso-nipônicas, a emergência do Atlântico Sul lusitano, a ocupação batava do Nordeste e a América portuguesa da primeira metade de Setecentos.
Numa segunda categoria, vêm as duas notáveis sínteses que publicou nos anos 60 sobre os impérios coloniais de Portugal e dos Países Baixos, ainda hoje o que há de melhor no gênero. Em terceiro lugar, enfileiram-se os ensaios de história comparada da expansão portuguesa, centrados em temas concretos como a instituição municipal, a atuação da igreja, a posição da mulher ou as relações raciais no ultramar. Por fim, uma multidão de artigos em revistas históricas e científicas internacionais, que começam a ser recolhidos pela Fundação Oriente, de Lisboa, nos quais aprofundou inúmeros temas de que havia se ocupado apenas de passagem nas obras principais.
Que a um historiador inglês devam Portugal e o Brasil a primeira obra de conjunto acerca da expansão colonial do velho reino, constitui algo merecedor de alguma surpresa e sobretudo de reflexão. Passada a primeira, a segunda nos persuadirá de que o fato não é tão estranho assim, tendo em vista que historiadores portugueses e brasileiros, salvo um Oliveira Lima ou um João Lúcio de Azevedo, que versaram temas de ambos os lados do Atlântico, confinaram-se nas suas respectivas histórias nacionais, com um ardor muito mais digno da causa oposta.
A abordagem supranacional da história luso-brasileira foi assim deixada a estrangeiros; e, dadas as estreitas relações anglo-lusitanas, desde o século 17, um súdito de sua majestade britânica era o historiador fadado a realizar a tarefa desdenhada pelos nativos. Qual a razão dessa negligência? Trata-se, a meu ver, de um sistema de divisão do trabalho historiográfico ao longo das linhas de um nacionalismo estreito, que afetou até mesmo a historiografia de uma instituição eminentemente multinacional, como a Companhia de Jesus. Daí que, a outro brasilianista ilustre, Dauril Alden, já sejamos devedores da nova história dos jesuítas portugueses. E, contudo, os inacianos não careceram de historiadores eruditos, como indicam os sete volumes da "História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal", do padre Francisco Rodrigues, e os dez tomos da "História da Companhia de Jesus no Brasil", do padre Serafim Leite, ambos portugueses.
Tais obras foram concebidas e realizadas durante o longo consulado salazarista, em que a louvação do passado imperial tornara-se artigo obrigatório nas prateleiras ideológicas do regime. É verdade que se poderia alegar que tal limitação não era exclusivamente lusitana, de vez que a Boxer deve-se também a única obra satisfatória de síntese da expansão colonial dos Países Baixos; e que, contudo, tampouco a Holanda carece de historiadores competentes.
Ocorreu que os historiadores batavos e portugueses reagiram diversamente, no contexto dos seus diferentes regimes políticos, ao trauma nacional da perda dos respectivos impérios coloniais. Ao passo que os primeiros tenderam a se alhear da sorte das antigas possessões, a ponto de o neerlandês médio continuar solenemente ignorando, por exemplo, a experiência de quarto de século dos seus avoengos no Nordeste, os lusitanos agarraram-se com tenacidade nostálgica aos restos do império, cuja grandeza, na verdade, não havia sido tanta quanto eles gostam de fazer crer, como há muito observou Gilberto Freyre em "Casa-Grande & Senzala".

Mística imperialista
Em páginas bem menos lusófilas do que será sua obra posterior, ele observou sarcasticamente que, "longe de conformar-se com uma viuvez honesta, de nação decaída -como mais tarde a Holanda, que, depois de senhora de vasto império, entregou-se ao fabrico do queijo e da manteiga-, continuou Portugal (...) a supor-se o Portugal opulento de d. Sebastião vivo. A alimentar-se da fama adquirida nas conquistas de ultramar. A iludir-se de uma mística imperialista já sem base. A envenenar-se da mania de grandeza".
Que os historiadores portugueses se tivessem desinteressado da história brasileira pós-independência seria compreensível, como também é compreensível o desinteresse, para não falar em ignorância, do historiador brasileiro da história portuguesa do século 19. Seu alheamento no tocante à nossa história colonial é que parece injustificável. Foi assim que, na sua obra monumental sobre a economia dos descobrimentos portugueses, Vitorino Magalhães Godinho absteve-se de tratar de história brasileira, com o argumento de que a história econômica do Brasil já fora devidamente explorada pela historiografia nacional, quando, na realidade, sua macrovisão do império lusitano, de que careciam nossos historiadores econômicos, lhe teria permitido integrar o que se passava entre nós ao que se passava no resto do ultramar.
A Boxer cabe boa parte do crédito pelo reconhecimento de que as histórias portuguesa e brasileira tornam-se separadamente ininteligíveis e pela tendência, que já se detecta na historiografia mais recente, de saltar este fosso, como acaba de fazer Luiz Felipe de Alencastro em "O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras), que nos brindou com uma série de perspectivas novas, não apenas sobre a história do tráfico negreiro, mas igualmente sobre o papel, mais central do que se supunha, do comércio de africanos em Portugal e no Brasil. Outras deficiências necessitam ser preenchidas, a começar pelo estudo, cuja inexistência é clamorosa, das teias clientelísticas tecidas por indivíduos e grupos entre a metrópole e a colônia.
"A Idade de Ouro do Brasil", a terceira grande obra dedicada por Boxer à história brasileira, pode ser considerada a continuação do "Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola". A morte de Salvador, em 1686, coincide grosso modo com a crise final daquele Brasil talássico que se viera gestando desde os anos 70 de Quinhentos, em torno dos principais núcleos açucareiros da colônia.

Crise açucareira
Foi então que os preços do açúcar conheceram os níveis mais baixos de toda nossa história, obrigando Portugal, confrontado pelos problemas consequentes de balança de pagamentos no seu comércio com a Europa, a fazer apelo, pela primeira vez, a uma política de fomento manufatureiro, que teria, aliás, o fôlego curto.
Mais alguns anos e a descoberta das minas abrirá perspectivas novas ao reino e à América portuguesa, permitindo a colonização em base permanente de uma imensa área que até então fora apenas atravessada pelas bandeiras e entradas de São Paulo. Uma rápida olhada ao índice de "A Idade de Ouro do Brasil" já permite ao leitor dar-se conta do que há de velho e de novo no período de que a obra se ocupa. Na coluna das continuidades, a América portuguesa é ainda um império do Atlântico Sul, sobretudo no momento em que a presença lusitana no Oriente foi reduzida pela concorrência naval e comercial da Holanda e da Grã-Bretanha. À maneira do século 17, ela continua, nesse começo da centúria seguinte, a ser objeto da cobiça internacional, como indica o episódio da ocupação francesa do Rio de Janeiro.
Mas, na coluna das rupturas, os antigos núcleos hegemônicos, Bahia e Pernambuco, já não ocupam sozinhos o primeiro plano, embora Salvador permaneça fiel à sua vocação cenográfica e barroca de capital da América portuguesa e e entre Olinda e Recife se aprofundem as rivalidades da nobreza da terra com os reinóis comerciantes que culminarão na guerra civil de 1710-1711. Em especial, a colonização de Minas cria um novo pólo de existência colonial nas brenhas a oeste das serranias costeiras do litoral do Rio e de São Paulo, atraindo os contingentes demográficos mais diversos, os paulistas que haviam descoberto as jazidas, mas também os sertanejos do São Francisco e uma densa corrente imigratória do reino.
A originalidade da ocupação de Minas em termos brasileiros reside em que se realizou sob a forma de uma constelação de vilas, em lugar da tendência à concentração em uma única urbe, que fora de regra nas demais capitanias.
Daí a vida citadina ter sido ali bem mais intensa do que no restante do Brasil. Mas, se a colônia cresce no rumo do planalto central, ela o faz também, de maneira mais decisiva do que ocorrera antes, na direção dos sertões do Nordeste, subindo o vale do Amazonas e levando a presença portuguesa até a margem esquerda do rio da Prata. O livro de Boxer expõe como se gestou a nova configuração territorial que internacionalmente será consagrada pelo tratado de Madri.

Idade dourada
"A Idade de Ouro do Brasil" pode ser, portanto, um título desorientador. É claro que Boxer jogou com o duplo sentido de "idade do ouro" e de "idade dourada", conceito normalmente associado às fases de amadurecimento, não à de crescimento de uma sociedade, como definida no subtítulo. A leitura da obra faz-nos antes lembrar a asseveração de Gilberto Freyre, segundo a qual o século 18 foi o século mais agreste, isto é, o mais sertanejo, da história brasileira. Nele realiza-se plenamente a tendência, herdada da centúria anterior, que podemos denominar de ensimesmamento da América portuguesa. É óbvio que a própria existência do monopólio colonial estimula a segregação.
Anteriormente, porém, ele não fora suficiente para comprometer nossa fachada reinol da segunda metade de Quinhentos e da primeira de Seiscentos.
Somente a ruptura, em favor da segunda tendência, da dicotomia entre a economia de plantação e a expansão continental (e isto não apenas em termos do conjunto da colônia, mas igualmente em termos regionais), poderia produzir o fenômeno da interiorização que caracterizará a economia, a sociedade e a cultura brasileiras até o limiar do século 19, quando se imporá a tendência reequilibradora à reeuropeização. Com efeito, a expansão territorial de Oitocentos apenas remotamente pode ser considerada impulso civilizador, no sentido convencionalmente europeu, como fora ou buscara ser a colonização do primeiro século. A despeito da presença portuguesa, o nosso já era então um esforço de autocolonização, em que predominavam necessariamente os naturais da terra, tivessem sangue híbrido ou não.
Em vez de constituir a explosão de vitalidade coletiva resultante da mestiçagem, a expansão territorial foi a proeza tristonha de indivíduos marginalizados, geográfica e socialmente, por não haverem podido encontrar seu lugar ao sol na ordem escravocrata. Seu produto final foi o caipira. Nossa "marcha para o Oeste", seja ela na Amazônia, no Nordeste ou no Sudeste, onde também foi uma marcha para o Sul, foi sobretudo a fuga às dificuldades da economia escravista do litoral, funcionando como a válvula de escape que permitiu a consolidação do escravismo, assim como o êxodo rural permitiria, feita a Abolição, a sobrevida da grande propriedade.
A despeito de todo o triunfalismo com que tem sido invariavelmente saudada pela historiografia oficial, a expansão foi a linha de menor resistência da nossa história, e, portanto, do menor esforço, inaugurando a propensão nacional a sacrificar a solução dos problemas do dia, mediante a solução imediatista.
Esta será posteriormente racionalizada pelo ideal da construção de um "grande império", aspiração que ironicamente não constituiu uma reivindicação colonial, mas um plano da coroa no propósito, que não carecia de certo sebastianismo, de restaurar a posição de Portugal na Europa, embora, de Alexandre de Gusmão a José Bonifácio, ele tivesse contado com a assessoria da "intelligentsia" brasileira no reino.



A Idade de Ouro do Brasil
Charles Ralph Boxer
Tradução: Nair de Lacerda
Nova Fronteira (Tel. 0/xx/21/537-8770)
406 págs., R$ 39,00



Evaldo Cabral de Mello é historiador e autor, entre outros livros, de "Rubro Veio" e "Olinda Restaurada" (Topbooks).


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