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Para o historiador inglês Charles Boxer, histórias brasileira
e portuguesa não podem ser tratadas separadamente
O século agreste
EVALDO CABRAL DE MELLO
Charles Ralph Boxer (1904-2000), morto, quase centenário, em abril passado,
realizou na segunda metade do século 20
o grande projeto concebido, nos primeiros anos do 19, por seu compatriota Robert Southey, o primeiro brasilianista.
Como se não lhe bastasse o triunfo obtido
como poeta, Southey, de visita em Lisboa
a um tio capelão da feitoria inglesa, planejou escrever a história de Portugal e do
seu império ultramarino. Propósito que
só realizou pela metade, com os três alentados tomos da "História do Brasil", embora recolhesse boa quantidade do material indispensável à redação da história de
Portugal na Europa e na Ásia, como indica o inventário da sua biblioteca.
A Boxer caberia realizar o ambicioso
plano, não em consequência de uma decisão de princípio, como no caso de seu
antecessor, mas como resultado final de
um longo périplo historiográfico que lhe
permitiu abranger, imparcialmente, da
epopéia à picaresca, a presença lusitana
no mundo. Seu conhecimento das fontes
éditas e manuscritas relativas à expansão
portuguesa representa algo de literalmente assombroso, façanha que não poderia ser repetida não fossem os recursos
que a informática veio recentemente colocar à disposição do historiador, mas de
que Boxer não chegou a se beneficiar. A
essa capacidade de trabalho, contudo, estavam longe de corresponder os sinais
exteriores do rato de arquivo; e se prova
melhor não houvesse desta asserção, bastaria citar a aventurosa existência que levou na mocidade. Não há dúvida de que,
para Boxer, o tempo era uma mercadoria
de oferta infinitamente elástica.
Na sua obra, caberia mencionar de início os livros que dedicou a grandes temas
como a história de Macau (sua primeira
paixão historiográfica), a presença lusitana no Japão, as relações comerciais luso-nipônicas, a emergência do Atlântico Sul
lusitano, a ocupação batava do Nordeste
e a América portuguesa da primeira metade de Setecentos.
Numa segunda categoria, vêm as duas
notáveis sínteses que publicou nos anos
60 sobre os impérios coloniais de Portugal e dos Países Baixos, ainda hoje o que
há de melhor no gênero. Em terceiro lugar, enfileiram-se os ensaios de história
comparada da expansão portuguesa,
centrados em temas concretos como a
instituição municipal, a atuação da igreja,
a posição da mulher ou as relações raciais
no ultramar. Por fim, uma multidão de
artigos em revistas históricas e científicas
internacionais, que começam a ser recolhidos pela Fundação Oriente, de Lisboa,
nos quais aprofundou inúmeros temas
de que havia se ocupado apenas de passagem nas obras principais.
Que a um historiador inglês devam
Portugal e o Brasil a primeira obra de
conjunto acerca da expansão colonial do
velho reino, constitui algo merecedor de
alguma surpresa e sobretudo de reflexão.
Passada a primeira, a segunda nos persuadirá de que o fato não é tão estranho
assim, tendo em vista que historiadores
portugueses e brasileiros, salvo um Oliveira Lima ou um João Lúcio de Azevedo,
que versaram temas de ambos os lados
do Atlântico, confinaram-se nas suas respectivas histórias nacionais, com um ardor muito mais digno da causa oposta.
A abordagem supranacional da
história luso-brasileira foi assim
deixada a estrangeiros; e, dadas as
estreitas relações anglo-lusitanas,
desde o século 17, um súdito de
sua majestade britânica era o historiador fadado a realizar a tarefa
desdenhada pelos nativos. Qual a
razão dessa negligência? Trata-se,
a meu ver, de um sistema de divisão do trabalho historiográfico ao
longo das linhas de um nacionalismo estreito, que afetou até mesmo a historiografia de uma instituição eminentemente multinacional, como a Companhia de Jesus. Daí que, a outro brasilianista
ilustre, Dauril Alden, já sejamos
devedores da nova história dos jesuítas portugueses. E, contudo, os
inacianos não careceram de historiadores eruditos, como indicam
os sete volumes da "História da
Companhia de Jesus na Assistência de Portugal", do padre Francisco Rodrigues, e os dez tomos
da "História da Companhia de Jesus no Brasil", do padre Serafim
Leite, ambos portugueses.
Tais obras foram concebidas e
realizadas durante o longo consulado salazarista, em que a louvação do passado imperial tornara-se artigo obrigatório nas prateleiras ideológicas do regime. É verdade que se poderia alegar que tal
limitação não era exclusivamente
lusitana, de vez que a Boxer deve-se também a única obra satisfatória de síntese da expansão colonial dos Países Baixos; e que, contudo, tampouco a Holanda carece
de historiadores competentes.
Ocorreu que os historiadores
batavos e portugueses reagiram
diversamente, no contexto dos
seus diferentes regimes políticos,
ao trauma nacional da perda dos
respectivos impérios coloniais.
Ao passo que os primeiros tenderam a se alhear da sorte das antigas possessões, a ponto de o neerlandês médio continuar solenemente ignorando, por exemplo, a
experiência de quarto de século
dos seus avoengos no Nordeste,
os lusitanos agarraram-se com tenacidade nostálgica aos restos do
império, cuja grandeza, na verdade, não havia sido tanta quanto
eles gostam de fazer crer, como há
muito observou Gilberto Freyre
em "Casa-Grande & Senzala".
Mística imperialista
Em páginas bem menos lusófilas do que será sua obra posterior,
ele observou sarcasticamente que,
"longe de conformar-se com uma
viuvez honesta, de nação decaída
-como mais tarde a Holanda,
que, depois de senhora de vasto
império, entregou-se ao fabrico
do queijo e da manteiga-, continuou Portugal (...) a supor-se o
Portugal opulento de d. Sebastião
vivo. A alimentar-se da fama adquirida nas conquistas de ultramar. A iludir-se de uma mística
imperialista já sem base. A envenenar-se da mania de grandeza".
Que os historiadores portugueses se tivessem desinteressado da
história brasileira pós-independência seria compreensível, como
também é compreensível o desinteresse, para não falar em ignorância, do historiador brasileiro
da história portuguesa do século
19. Seu alheamento no tocante à
nossa história colonial é que parece injustificável. Foi assim que, na
sua obra monumental sobre a
economia dos descobrimentos
portugueses, Vitorino Magalhães
Godinho absteve-se de tratar de
história brasileira, com o argumento de que a história econômica do Brasil já fora devidamente
explorada pela historiografia nacional, quando, na realidade, sua
macrovisão do império lusitano,
de que careciam nossos historiadores econômicos, lhe teria permitido integrar o que se passava
entre nós ao que se passava no
resto do ultramar.
A Boxer cabe boa parte do crédito pelo reconhecimento de que
as histórias portuguesa e brasileira tornam-se separadamente
ininteligíveis e pela tendência, que
já se detecta na historiografia
mais recente, de saltar este fosso,
como acaba de fazer Luiz Felipe
de Alencastro em "O Trato dos
Viventes" (Companhia das Letras), que nos brindou com uma
série de perspectivas novas, não
apenas sobre a história do tráfico
negreiro, mas igualmente sobre o
papel, mais central do que se supunha, do comércio de africanos
em Portugal e no Brasil. Outras
deficiências necessitam ser preenchidas, a começar pelo estudo, cuja inexistência é clamorosa, das
teias clientelísticas tecidas por indivíduos e grupos entre a metrópole e a colônia.
"A Idade de Ouro do Brasil", a
terceira grande obra dedicada por
Boxer à história brasileira, pode
ser considerada a continuação do
"Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola". A morte de Salvador, em 1686, coincide grosso modo com a crise final daquele Brasil
talássico que se viera gestando
desde os anos 70 de Quinhentos,
em torno dos principais núcleos
açucareiros da colônia.
Crise açucareira
Foi então que os preços do açúcar conheceram os níveis mais
baixos de toda nossa história,
obrigando Portugal, confrontado
pelos problemas consequentes de
balança de pagamentos no seu comércio com a Europa, a fazer apelo, pela primeira vez, a uma política de fomento manufatureiro,
que teria, aliás, o fôlego curto.
Mais alguns anos e a descoberta
das minas abrirá perspectivas novas ao reino e à América portuguesa, permitindo a colonização
em base permanente de uma
imensa área que até então fora
apenas atravessada pelas bandeiras e entradas de São Paulo. Uma
rápida olhada ao índice de "A Idade de Ouro do Brasil" já permite
ao leitor dar-se conta do que há de
velho e de novo no período de que
a obra se ocupa. Na coluna das
continuidades, a América portuguesa é ainda um império do
Atlântico Sul, sobretudo no momento em que a presença lusitana
no Oriente foi reduzida pela concorrência naval e comercial da
Holanda e da Grã-Bretanha. À
maneira do século 17, ela continua, nesse começo da centúria seguinte, a ser objeto da cobiça internacional, como indica o episódio da ocupação francesa do Rio
de Janeiro.
Mas, na coluna das rupturas, os
antigos núcleos hegemônicos, Bahia e Pernambuco, já não ocupam
sozinhos o primeiro plano, embora Salvador permaneça fiel à sua
vocação cenográfica e barroca de
capital da América portuguesa e e
entre Olinda e Recife se aprofundem as rivalidades da nobreza da
terra com os reinóis comerciantes
que culminarão na guerra civil de
1710-1711. Em especial, a colonização de Minas cria um novo pólo
de existência colonial nas brenhas
a oeste das serranias costeiras do
litoral do Rio e de São Paulo,
atraindo os contingentes demográficos mais diversos, os paulistas que haviam descoberto as jazidas, mas também os sertanejos do
São Francisco e uma densa corrente imigratória do reino.
A originalidade da ocupação de
Minas em termos brasileiros reside em que se realizou sob a forma
de uma constelação de vilas, em
lugar da tendência à concentração
em uma única urbe, que fora de
regra nas demais capitanias.
Daí a vida citadina ter sido ali
bem mais intensa do que no restante do Brasil. Mas, se a colônia
cresce no rumo do planalto central, ela o faz também, de maneira
mais decisiva do que ocorrera antes, na direção dos sertões do Nordeste, subindo o vale do Amazonas e levando a presença portuguesa até a margem esquerda do
rio da Prata. O livro de Boxer expõe como se gestou a nova configuração territorial que internacionalmente será consagrada pelo
tratado de Madri.
Idade dourada
"A Idade de Ouro do Brasil" pode ser, portanto, um título desorientador. É claro que Boxer jogou com o duplo sentido de "idade do ouro" e de "idade dourada",
conceito normalmente associado
às fases de amadurecimento, não
à de crescimento de uma sociedade, como definida no subtítulo. A
leitura da obra faz-nos antes lembrar a asseveração de Gilberto
Freyre, segundo a qual o século 18
foi o século mais agreste, isto é, o
mais sertanejo, da história brasileira. Nele realiza-se plenamente a
tendência, herdada da centúria
anterior, que podemos denominar de ensimesmamento da América portuguesa. É óbvio que a
própria existência do monopólio
colonial estimula a segregação.
Anteriormente, porém, ele não
fora suficiente para comprometer
nossa fachada reinol da segunda
metade de Quinhentos e da primeira de Seiscentos.
Somente a ruptura, em favor da
segunda tendência, da dicotomia
entre a economia de plantação e a
expansão continental (e isto não
apenas em termos do conjunto da
colônia, mas igualmente em termos regionais), poderia produzir
o fenômeno da interiorização que
caracterizará a economia, a sociedade e a cultura brasileiras até o limiar do século 19, quando se imporá a tendência reequilibradora
à reeuropeização. Com efeito, a
expansão territorial de Oitocentos apenas remotamente pode ser
considerada impulso civilizador,
no sentido convencionalmente
europeu, como fora ou buscara
ser a colonização do primeiro século. A despeito da presença portuguesa, o nosso já era então um
esforço de autocolonização, em
que predominavam necessariamente os naturais da terra, tivessem sangue híbrido ou não.
Em vez de constituir a explosão
de vitalidade coletiva resultante
da mestiçagem, a expansão territorial foi a proeza tristonha de indivíduos marginalizados, geográfica e socialmente, por não haverem podido encontrar seu lugar
ao sol na ordem escravocrata. Seu
produto final foi o caipira. Nossa
"marcha para o Oeste", seja ela na
Amazônia, no Nordeste ou no Sudeste, onde também foi uma marcha para o Sul, foi sobretudo a fuga às dificuldades da economia
escravista do litoral, funcionando
como a válvula de escape que permitiu a consolidação do escravismo, assim como o êxodo rural
permitiria, feita a Abolição, a sobrevida da grande propriedade.
A despeito de todo o triunfalismo com que tem sido invariavelmente saudada pela historiografia
oficial, a expansão foi a linha de
menor resistência da nossa história, e, portanto, do menor esforço,
inaugurando a propensão nacional a sacrificar a solução dos problemas do dia, mediante a solução
imediatista.
Esta será posteriormente racionalizada pelo ideal da construção
de um "grande império", aspiração que ironicamente não constituiu uma reivindicação colonial,
mas um plano da coroa no propósito, que não carecia de certo sebastianismo, de restaurar a posição de Portugal na Europa, embora, de Alexandre de Gusmão a José Bonifácio, ele tivesse contado
com a assessoria da "intelligentsia" brasileira no reino.
A Idade de Ouro do Brasil
Charles Ralph Boxer
Tradução: Nair de Lacerda
Nova Fronteira (Tel. 0/xx/21/537-8770)
406 págs., R$ 39,00
Evaldo Cabral de Mello é historiador e
autor, entre outros livros, de "Rubro
Veio" e "Olinda Restaurada" (Topbooks).
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