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Uma investigação científica do corpo
e das emoções ao conhecimento de si
Cérebro, emoção e consciência
JOÃO PAULO MONTEIRO
Há cinco anos tive ocasião de apresentar neste Jornal de Resenhas (7/8/95) o primeiro livro do neurobiólogo português António Damásio, "O Erro de
Descartes". Intitulei essa resenha como "Cérebro,
Emoção e Razão", e o novo título acima busca expressar, no que tem de comum com o anterior, a íntima continuidade entre as duas obras. Volto a citar
aqui uma passagem crucial desse primeiro livro: "Os
sentimentos parecem depender de um sistema multicomponente, que é inseparável da regulação biológica. A razão parece depender de sistemas cerebrais
específicos, alguns dos quais acontece processarem
sentimentos". No lugar da razão, neste novo livro é
agora o fenômeno da consciência que Damásio
apresenta à luz da neurobiologia, como ligado à sobrevivência biológica da espécie humana e como
função essencial da vida do corpo e seus processos
emocionais.
Em recente entrevista, declara o autor que a grande
tese deste livro é que, "tudo quanto acontece do ponto de vista da organização nervosa, da organização
mental, está ligado à regulação da vida", logo esclarecendo que a evolução histórica da humanidade nos
permite ter processos imaginativos e criativos, relativamente autônomos, cujas produções, literárias,
musicais etc., nada têm a ver com a regulação vital.
Não há nesta obra qualquer reducionismo biológico,
apenas um enorme esforço teórico para aprofundar
a compreensão daquilo que em nós deriva de raízes
biológicas e evolutivas.
Certamente haverá, em alguns guetos de nossa intelectualidade acadêmica, quem considere pouco
progressista esse esforço, que considerarão "positivista" ou pouco dialético. Mas o real progresso do
conhecimento filosófico e científico tem seguido a
direção escolhida por Damásio, nas inúmeras obras
sobre o problema da consciência que têm surgido
nos últimos anos, de Patricia e Paul Churchland a
Colin McGinn, de Daniel Dennett a John Searle, e
muitos outros filósofos, biólogos e neurocientistas, e
até físicos como Roger Penrose. Para compreender o
homem em sua inteireza, cumpre reconhecer que
somos o que somos devido a uma evolução cujo óbvio aspecto histórico e cultural é inseparável de seu
inegável lado natural e biológico.
O sentimento de si
Somos dotados de consciência porque tal capacidade era indispensável à nossa sobrevivência. Mas
Damásio distingue nesta obra entre a consciência
em geral ("nuclear") e a consciência que cada um de
nós tem de si mesmo, e é esta o principal objeto de
suas hipóteses filosófico-científicas -o título original, "The Feeling of What Happens", foi traduzido
em Portugal, com aprovação do autor, como "O
Sentimento de Si"; num recente artigo publicado em
Portugal, Damásio fala do "sentido do si". Ora "sentir o que acontece em nós" é encarado pelo autor da
mesma perspectiva adotada para a razão na obra anterior: como função biológica da vida das emoções.
A raiz dessa consciência de si mesmo está, segundo
a teoria de Damásio, no sentimento de nossas próprias emoções, da percepção das maneiras como
elas alteram nosso organismo. É um novo passo anticartesiano, de afastamento em relação ao racionalismo: tal como a razão, a consciência é mais emocional do que intelectual em sua origem, embora, evidentemente, tal como a razão, se tenha desenvolvido
também, e eminentemente, como capacidade intelectual. Ou por outra: nossa vida intelectual é explicada a partir de nosso lado emocional.
No segundo capítulo, Damásio lamenta que a filosofia, apesar de David Hume e da tradição que nele
se origina, tenha relegado as emoções para o lado da
carne e da animalidade. O professor de Harvard que,
a propósito do primeiro livro de Damásio, escreveu
que "David Hume deve estar sorrindo", deve estar
ele próprio sorrindo ainda mais com este novo livro.
Não me perguntem quem deve estar rangendo os
dentes.
Num outro aspecto nosso autor se aproxima da filosofia de Hume, dessa vez, aparentemente, sem de
tal se aperceber. Tanto no "Tratado da Natureza Humana" como na "Investigação sobre o Entendimento Humano" (em 1739 e em 1748), há capítulos com
o título, então mais provocativo ainda do que hoje
(fora dos tais guetos...), de "A Razão dos Animais",
em que o filósofo escocês atribuía a muitos animais
as mesmas capacidades de inferência causal que caracterizam nossa espécie, apenas em grau inferior.
Há um eco dessa atitude epistêmica em Damásio,
em sua insistência em que essa consciência de ordem superior que é o sentido de si mesmo não é exclusiva dos homens e das mulheres, mas se manifesta também, por exemplo, nos macacos bonobos e
em "alguns cães seus conhecidos", e a partir das
mesmas raízes emocionais.
Naturalismo consistente
Bom humor à parte, há aqui uma tese profunda, de
um naturalismo consistente que, ao mesmo tempo
que favorece o surgimento de boas hipóteses científicas, tende a abater a velha arrogância humana, na
infundada crença de alguns de nós de pertencer a
uma espécie "superior" em tudo. É mais um caso em
que superstição, religião e ideologia se dão as mãos
na ingente tarefa da construção da ignorância.
António Damásio é hoje uma das principais figuras do que devemos considerar uma nova Ilustração,
um novo Iluminismo apostado numa luta incessante contra múltiplas formas de superstição. Todas essas formas, seja qual for sua origem, tendem a destruir ou a vilipendiar o novo Naturalismo que por toda a parte se vai manifestando na compreensão do
homem, tanto em filosofia como em diversas tentativas de pesquisa interdisciplinar. É cada vez mais comum entre os filósofos tradicionalmente considerados "analíticos" ouvir-se dizer coisas como "agora
somos todos naturalistas", talvez em parte devido à
influência de filósofos como Quine e Davidson, Searle e Dennett. No caso de António Damásio temos um
naturalismo especialmente sofisticado, o de um
cientista com vocação e saber filosóficos definidos,
que apresenta convincentemente uma concepção
unitária da racionalidade e da emoção, na trilha do
evolucionismo darwiniano e no espírito das melhores tradições da filosofia clássica e contemporânea.
O Mistério da Consciência
António Damásio
Tradução: Laura Teixeira Motta
Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/ 3846-0801)
474 págs., R$ 34,50
João Paulo Monteiro é professor no departamento de filosofia
da USP e da Universidade de Lisboa, autor de "Teoria, Retórica,
Ideologia" (Ática) e "Hume e a Epistemologia" (Imprensa Nacional, Lisboa).
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