São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

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Uma investigação científica do corpo e das emoções ao conhecimento de si
Cérebro, emoção e consciência

JOÃO PAULO MONTEIRO

Há cinco anos tive ocasião de apresentar neste Jornal de Resenhas (7/8/95) o primeiro livro do neurobiólogo português António Damásio, "O Erro de Descartes". Intitulei essa resenha como "Cérebro, Emoção e Razão", e o novo título acima busca expressar, no que tem de comum com o anterior, a íntima continuidade entre as duas obras. Volto a citar aqui uma passagem crucial desse primeiro livro: "Os sentimentos parecem depender de um sistema multicomponente, que é inseparável da regulação biológica. A razão parece depender de sistemas cerebrais específicos, alguns dos quais acontece processarem sentimentos". No lugar da razão, neste novo livro é agora o fenômeno da consciência que Damásio apresenta à luz da neurobiologia, como ligado à sobrevivência biológica da espécie humana e como função essencial da vida do corpo e seus processos emocionais.
Em recente entrevista, declara o autor que a grande tese deste livro é que, "tudo quanto acontece do ponto de vista da organização nervosa, da organização mental, está ligado à regulação da vida", logo esclarecendo que a evolução histórica da humanidade nos permite ter processos imaginativos e criativos, relativamente autônomos, cujas produções, literárias, musicais etc., nada têm a ver com a regulação vital. Não há nesta obra qualquer reducionismo biológico, apenas um enorme esforço teórico para aprofundar a compreensão daquilo que em nós deriva de raízes biológicas e evolutivas.
Certamente haverá, em alguns guetos de nossa intelectualidade acadêmica, quem considere pouco progressista esse esforço, que considerarão "positivista" ou pouco dialético. Mas o real progresso do conhecimento filosófico e científico tem seguido a direção escolhida por Damásio, nas inúmeras obras sobre o problema da consciência que têm surgido nos últimos anos, de Patricia e Paul Churchland a Colin McGinn, de Daniel Dennett a John Searle, e muitos outros filósofos, biólogos e neurocientistas, e até físicos como Roger Penrose. Para compreender o homem em sua inteireza, cumpre reconhecer que somos o que somos devido a uma evolução cujo óbvio aspecto histórico e cultural é inseparável de seu inegável lado natural e biológico.

O sentimento de si
Somos dotados de consciência porque tal capacidade era indispensável à nossa sobrevivência. Mas Damásio distingue nesta obra entre a consciência em geral ("nuclear") e a consciência que cada um de nós tem de si mesmo, e é esta o principal objeto de suas hipóteses filosófico-científicas -o título original, "The Feeling of What Happens", foi traduzido em Portugal, com aprovação do autor, como "O Sentimento de Si"; num recente artigo publicado em Portugal, Damásio fala do "sentido do si". Ora "sentir o que acontece em nós" é encarado pelo autor da mesma perspectiva adotada para a razão na obra anterior: como função biológica da vida das emoções.
A raiz dessa consciência de si mesmo está, segundo a teoria de Damásio, no sentimento de nossas próprias emoções, da percepção das maneiras como elas alteram nosso organismo. É um novo passo anticartesiano, de afastamento em relação ao racionalismo: tal como a razão, a consciência é mais emocional do que intelectual em sua origem, embora, evidentemente, tal como a razão, se tenha desenvolvido também, e eminentemente, como capacidade intelectual. Ou por outra: nossa vida intelectual é explicada a partir de nosso lado emocional.
No segundo capítulo, Damásio lamenta que a filosofia, apesar de David Hume e da tradição que nele se origina, tenha relegado as emoções para o lado da carne e da animalidade. O professor de Harvard que, a propósito do primeiro livro de Damásio, escreveu que "David Hume deve estar sorrindo", deve estar ele próprio sorrindo ainda mais com este novo livro. Não me perguntem quem deve estar rangendo os dentes.
Num outro aspecto nosso autor se aproxima da filosofia de Hume, dessa vez, aparentemente, sem de tal se aperceber. Tanto no "Tratado da Natureza Humana" como na "Investigação sobre o Entendimento Humano" (em 1739 e em 1748), há capítulos com o título, então mais provocativo ainda do que hoje (fora dos tais guetos...), de "A Razão dos Animais", em que o filósofo escocês atribuía a muitos animais as mesmas capacidades de inferência causal que caracterizam nossa espécie, apenas em grau inferior. Há um eco dessa atitude epistêmica em Damásio, em sua insistência em que essa consciência de ordem superior que é o sentido de si mesmo não é exclusiva dos homens e das mulheres, mas se manifesta também, por exemplo, nos macacos bonobos e em "alguns cães seus conhecidos", e a partir das mesmas raízes emocionais.

Naturalismo consistente
Bom humor à parte, há aqui uma tese profunda, de um naturalismo consistente que, ao mesmo tempo que favorece o surgimento de boas hipóteses científicas, tende a abater a velha arrogância humana, na infundada crença de alguns de nós de pertencer a uma espécie "superior" em tudo. É mais um caso em que superstição, religião e ideologia se dão as mãos na ingente tarefa da construção da ignorância.
António Damásio é hoje uma das principais figuras do que devemos considerar uma nova Ilustração, um novo Iluminismo apostado numa luta incessante contra múltiplas formas de superstição. Todas essas formas, seja qual for sua origem, tendem a destruir ou a vilipendiar o novo Naturalismo que por toda a parte se vai manifestando na compreensão do homem, tanto em filosofia como em diversas tentativas de pesquisa interdisciplinar. É cada vez mais comum entre os filósofos tradicionalmente considerados "analíticos" ouvir-se dizer coisas como "agora somos todos naturalistas", talvez em parte devido à influência de filósofos como Quine e Davidson, Searle e Dennett. No caso de António Damásio temos um naturalismo especialmente sofisticado, o de um cientista com vocação e saber filosóficos definidos, que apresenta convincentemente uma concepção unitária da racionalidade e da emoção, na trilha do evolucionismo darwiniano e no espírito das melhores tradições da filosofia clássica e contemporânea.



O Mistério da Consciência
António Damásio
Tradução: Laura Teixeira Motta
Companhia das Letras (Tel. 0/xx/11/ 3846-0801)
474 págs., R$ 34,50



João Paulo Monteiro é professor no departamento de filosofia da USP e da Universidade de Lisboa, autor de "Teoria, Retórica, Ideologia" (Ática) e "Hume e a Epistemologia" (Imprensa Nacional, Lisboa).


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