São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2001

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O lugar da República

Grupo de intelectuais discute a questão republicana

FRANCISCO DE OLIVEIRA

A República, a democracia e a federação no Brasil poderiam ser pensadas pelos seus avessos, o que, mesmo sendo grave, não é irreparável, visto que são aperfeiçoáveis, formadas pela vontade do povo que, para sua própria felicidade, não é perfeito.
O problema maior não estaria na imperfeição de nossas instituições e formas políticas, mas talvez em que temos sido, no século que acaba de findar-se, república sem republicanos, democracia -nos curtos períodos de sua precária vigência- sem democratas e federação sem federalistas.
Aos avessos soma-se um mal explicado desinteresse pela elaboração teórica dos seus fundamentos, princípios e doutrinas. A experiência institucional brasileira continua reclamando dessa falta de interesse, sem o qual nenhuma cultura política pode se firmar.
A República esteve - junto com a Abolição, com a qual nasceu, separando-se em seus desenlaces- no centro dos debates, desde a segunda metade do século 19. Mas, com a vitória da República, o debate minguou e baixou de nível. O divórcio entre a questão social da Abolição e a questão republicana pode ter sido fatal para as duas. Logo a militarização da República impôs o debate pelo silêncio, falado por armas e quarteladas, contraprova da instabilidade que atravessa toda a história republicana, incluídas a ditadura varguista, a ditadura militar de 1964/ 1984 e as tentativas de golpe de Estado que, em média, no período pós-revolução de 1930, ocorreram a cada três anos.
O debate republicano foi agitado sobretudo pelos próprios políticos e intelectuais propagandistas, enquanto o panorama de hoje e de já algum tempo assinala a tibieza da produção -existe?- de parte dos políticos, e os intelectuais recuaram da linha de frente da propaganda e se reservaram, com a crescente importância das ciências sociais e sua profissionalização, ao papel de analistas.

A Constituinte de 1988
Tudo se passa como se a República estivesse plenamente consolidada, necessitando apenas de pequenos reparos, já que sua arquitetura conceitual pareceria irretocável. O último grande esforço reformista deu-se com a Constituinte de 1988, que avançou muito nos retoques e pouco na modificação da arquitetura mais ampla. Na contramão, as reformas do ciclo Fernando Henrique Cardoso estão transformando-a num Frankenstein irreconhecível, aprofundando o "ad hoc" e o casuísmo.
Partidários da esquerda e da direita sempre se desentenderam sobre o significado da República. Para os segundos, ela tem sido a forma política que permitiu, a salvo de grandes rupturas, a mudança de turno do mando; sempre que a forma não acolheu os desígnios dos grupos mais poderosos, a república não resistiu, de que a própria Revolução de 1930 e a ditadura militar de 1964 são os mais recentes e dramáticos exemplos.
A república, para a direita, é a consagração da indivisibilidade de seu domínio, e a lei e as regras republicanas existiram para os adversários: "Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei". A reivindicação da autonomia cidadã foi identificada como o movimento centrífugo da barbárie -ecos do pensamento autoritário clássico-, contra o que agitavam-se e acionavam-se os quartéis, ferindo-se de morte a instituição republicana.
Para a esquerda, o significado da República era, também, impreciso. Visto que esta é significativamente o governo das formas, limites, regras das relações, hierarquia e contenção dos poderes, repartição entre o público e o privado, a esquerda sempre teve dificuldades em aceitá-la, no pressuposto de que programas revolucionários deveriam subvertê-la. Aceitando que a República vem carecendo, praticamente desde sua fundação, de amplas reformas, não se encontra, entretanto, nenhuma elaboração teórica séria sobre ela por parte da esquerda.
Além disso, o que nunca esteve muito longe da verdade, as unidades republicanas e seu pacto constituíam, no mais das vezes, redutos e domínios incontestes de ferozes oligarquias; ironicamente, esse era, também, o diagnóstico dos Oliveira Viana, Alberto Torres e Francisco Campos.

A República à prova
O processo de intensas transformações da sociedade brasileira no século 20 trouxe lenha à fogueira de uma forma de governo, de regime e de pacto que mal se segurava. Uma industrialização -que realizou em 50 anos o programa abortado desde a segunda metade do século 19, nas condições do capitalismo moderno, complexo, oligopolista e intervencionista, com uma dupla crise internacional, Segunda Guerra Mundial e Grande Depressão, moldando as novas formas mesmo das repúblicas mais consolidadas, incluindo aqui as monarquias constitucionais "qua" repúblicas- submeteu a República brasileira às mais duras provas. Das quais se saiu por meio de uma poderosa recentralização no nível mais alto da União, com um Estado reestruturado e poderosamente intervencionista "ad hoc", levando de roldão todas as regras, hierarquias, pacto das relações, embaralhando os territórios e jurisdições do público e do privado, numa cultura política que nunca tinha primado por esses recortes.
Nessas condições, como conciliar república e iberismo? Ademais, reconheça-se, as transformações na relação entre público e privado, Estado e sociedade, cidadão e mercado, que ocorreram com maior força a partir da segunda metade do século 20, não foram nada fáceis nem imediatamente reconhecíveis nas novas condições da internacionalização do capital e do mundo da Guerra Fria.
A nova forma de estruturação das nações, com a constituição dos grandes blocos, e o chamado processo de globalização, nome eufemístico e redondo para a etapa superior do imperialismo norte-americano, têm forte impacto sobre as estruturas e arcabouços internos da república. O "ad hoc" permanente torna letra morta qualquer disposição legal, mesmo que emergencial, de apenas três dias antes; é a emergência da emergência, ou a exceção permanente.
A feroz atividade legisferante do Executivo, uma tendência mundial agravada na periferia, tende a transformar o Legislativo em casa de conivência, subalterna, sob o pretexto da velocidade das decisões do mundo internetizado. O monitoramento permanente à Orwell quebra sigilos, invade privacidades, apontando a flagrante contradição entre um mundo dominado economicamente por 500 megacorporações e os institutos pensados para repúblicas da concorrência perfeita, mas o faz no suposto da permanência da concorrência perfeita, misturando cidadãos e empresas, indivíduos e corporações. Uma república falível, até o ponto que suas sucessivas medidas provisórias o atestam, cobra infalibilidade dos funcionários, cuja missão constitucional é exatamente a de zelar pelas regras da vida pública. Acuada nos novos tempos do dinheiro virtual, a República dá mostras de sucumbir.
Parafraseando Roberto Schwarz, a hora é péssima, ótima para pensar a República. Há um movimento amplo neste sentido, que se esboça desde o MST, com sua reivindicação radical de propriedade da terra, que é simultaneamente republicana, democrática e anacrônica -visto que não é mais a propriedade da terra o decisivo, mas ela ainda é o pilar central das velhas regras mercantis que continuam a reger a vida do cidadão-, passando pelos movimentos populares, com sua reivindicação de participação e transparência, que atinge os partidos políticos e o sistema político como um todo, até o movimento dos procuradores.
Experiências como a do orçamento participativo -que não deve ser tido como o emplastro do conto de Machado-, que introduzem quase um outro nível de ordenação que pode conflitar com o estabelecido na arquitetura republicana, exigem não apenas ação, mas pensamento inovador, para que ele próprio não se anule enredando-se na contestação inútil das instituições consagradas. As eleições municipais recentes estão a sugerir inovações, desde que as palavras de ordem vencedoras pedem soluções simples para uma complexidade crescente. Que fazer diante da Lei de Responsabilidade Fiscal que, na forma em que está, representa uma nova recentralização no nível federal e pode tornar os prefeitos e governadores meros arquivistas, anulando a vontade popular?

Quem é republicano?
Essa nova complexidade está a requerer ser interrogada com as armas da crítica, para refazer não apenas a pergunta de caráter utilitário "para que serve a república", mas para que serve a república em nossa teoria política, constitucional, sociológica e ficcional. Na argamassa da formação da sociedade brasileira, qual é o lugar da República? Por que em antigas manifestações culturais populares existe o lugar do rei, do príncipe, do imperador, da coroa imperial e não existe o lugar do presidente? Por que as armas da República não ornam os carros alegóricos dos carnavais? Quem é republicano e até onde a república institui e constrói, ela mesma, os modos intelectuais de interrogar a sociedade e a própria teoria da sociedade?
Estas são as questões a que se dedica "Pensar a República". De novo, e isso é alvissareiro, os intelectuais se jogam à tarefa indeclinável e insubstituível anunciada no título. O grupo dos "Repúblicos", reunindo Renato Janine Ribeiro, Sergio Cardoso, Marcelo Jasmin, Olgária Matos, José Murilo de Carvalho, Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Heloísa Starling e Wander Melo Miranda, se abalança à complexidade rastreando os conflitos e convergências entre a república e a democracia; o que quer dizer essa forma mista cuja definição precisa é sempre precária, mas indispensável; as novas condições que estão a exigir um novo humanismo cívico, ao tempo em que as demandas pragmáticas o dificultam; as raízes do interesse na fundação republicana; o fetiche das formas -já que toda forma é um fetiche- na república; a cidadania numa época global; a contribuição republicana à civilização brasileira, o sertão como metáfora da dificuldade republicana; a violência como forma urbana de uma república não republicana.
Tal como os antigos clubes republicanos, "Os Repúblicos" retomam a tradição do debate, que é a caução da ação republicana. Já não era sem tempo. O fôlego da República é curto e o oxigênio do debate é urgente.
Riobaldo Tatarana é um jagunço trágico. Refestelado em sua cadeira de balanço, do alto do amplo alpendre de sua casa de cangaceiro reformado e bem-posto, metáfora não muito forçada da dominação imperfeita, mas contínua, das classes que se sucedem no comando da República, ele narra uma história. Parece-se pouco, estilisticamente, com o "Angelus Novus", mas é de um acúmulo de desastres que ele fala. O desastre da lei e da sociabilidade da lei, da regra e do pacto cidadão. A sobrevivência da ordem pelo pacto do avesso.
Sobrevivente do instinto, das cinzas dos projetos de Medeiro Vaz, Joca Ramiro e da modernidade de Zé Bebelo, sua fala mansa vem tocada pela beleza de Diadorim, que lhe deu acesso ao fracasso e à incompletude da República. Que lhe decifrou a pertinácia, persistência, teimosia, que resultaram no único sucesso: o de inventar uma república de onde ela não poderia ter saído, do escravismo, analfabetismo, prebendalismo e predação das elites; por isso, torta, meio popular, meio de cima.
Logo ele, Riobaldo, o mais despojado e ignorante dos jagunços dos bandos que cruzaram as áridas e sertanejas páginas da república de Rosa, ficou para contar a história. Há mais que metáfora nessa fratura inconsútil do que somente pode ser pelo desejo do avesso.


Francisco de Oliveira é professor aposentado de sociologia na USP e autor, entre outros livros, de "Direitos do Antivalor" (Vozes).

Pensar a República
Newton Bignotto (org.)
Editora UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4656)
192 págs., R$ 21,00


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