São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2001

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A vida no deserto refrigerado

HEITOR FRÚGOLI JR.

Os shopping centers condensam uma modernização multifacetada, que se exprime nas estratégias do comércio varejista, nos cenários arquitetônicos fechados com relação à exterioridade, no apelo planejado às compras (incluindo as supérfluas), em determinados estilos não apenas de consumo, mas também de lazer e de sociabilidade. Alguns estudos já comprovaram seu caráter seletivo e excludente, sobretudo por reforçar a segregação urbana, algo que se consolida também em muitas representações sociais a seu respeito. Sem deixar de traduzir uma realidade, isso entretanto não dá conta de um fenômeno paralelo, ligado à sua crescente massificação, à medida que os shoppings vêm também se situando em contextos mais populares, com a incorporação em seus corredores e "praças" de um público bastante diversificado, incluindo muitos adolescentes de baixa renda. Não obstante, tal fato tem alterado muito pouco a visão predominante a seu respeito.
Tendo sido escrito por uma estudante carioca de apenas 17 anos, o livro "No Shopping" poderia a princípio parecer apenas uma publicação a mais, inserida no atual filão voltado ao público adolescente, com um título a sugerir, pelo que já foi dito, um enredo pueril e consumista. Algo, diga-se de passagem, sem o apelo dos escritos nascidos de trajetórias dramáticas de jovens confrontados com realidades hostis -periferia violenta, drogas, Aids, Febem etc.-, ultimamente com bastante receptividade.
Sua leitura, entretanto, surpreende em alguns aspectos, a começar pela linguagem, com um texto cuja estrutura é marcada por uma narrativa cortada e não linear, muitas vezes próxima à poesia. Por meio desses recursos, a autora busca transmitir uma vivência onde o percurso de vida é substituído por relatos secos e curtos, expressando subjetivamente fragmentos da experiência urbana de adolescentes de classe média de sua geração, confinados entre a escola e o shopping, imersos numa cultura do consumo.
O livro tem assim alguns méritos, ainda que não se não devam criar grandes expectativas quanto ao estilo, pois nele também podem naufragar sobretudo os leitores que pouco ou nada partilhem do universo e do ritmo ágil ali contidos. A própria autora parece procurar manter propositadamente um texto cifrado, característico de certas formas de comunicação dessa faixa etária. Trata-se, de todo modo, de uma visão construída "por dentro", narrada na "primeira pessoa", sem críticas a priori, mas tampouco traçando um perfil glamouroso, o que permite um interessante olhar sobre a fragmentação, dado permanente dessa experiência.
Inevitável retomar aqui a "estética do choque" proposta por Walter Benjamin, típica da temporalidade cortada pelos múltiplos estímulos e proliferação de imagens já presentes nos grandes centros urbanos da passagem do século 19, exacerbados e também mais objetivados ao longo das últimas décadas. Com isso, delineia-se também uma experiência cercada por apelos, signos e aparelhos de consumo individual.
Assim, os jogos de sedução entre Delia e Yuri transcorrem de forma ora desleixada ora urgente dentro do shopping, entre lanchonetes, corredores, vitrinas, escadas rolantes, butiques e vídeo-locadoras.
Ao seu modo, embriagam-se, não propriamente da multidão, mas de flashes de conversas entre frequentadores: "-Não me faça perguntas, Regina. Eu não gosto de perguntas -disse o homem, tragando o charuto. O executivo respondeu assim quando a loura de microssaia perguntou se ele era casado. Delia pensou: "Ele vai dizer: eu gosto é de respostas'".
No capítulo 9, único com título -"O Multiplex"-, a autora convida com pressa o leitor à escolha entre três trajetos na leitura -"O Drama" (livre), "O Romance" (12 anos) e "A Violência" (16 anos)- , tal como o consumidor que hoje pode escolher entre vários filmes espalhados por pequenas salas, numa grade horária cada vez mais cheia de opções. Diálogos rápidos se multiplicam no telefone, no celular, no interfone, evidenciando tanto a intensificação da comunicação quanto também do isolamento. Ocorrem relações ambíguas entre clientes e atendentes: ora os primeiros esnobam os segundos por deterem o poder da compra, ora são sutilmente esnobados pelos últimos, quando é incontestável que os possíveis compradores pertencem a uma classe social menos favorecida. Um dos programas na "praça de alimentação" é a ida ao "cibercafé" (que oferece acesso à Internet), onde uma mensagem irônica remete à saudade dos aparelhos rapidamente tornados obsoletos: "Ah! Que saudades da minha infância tecnológica! Do meu XT de letras verdes. 64 KB de RAM (...) Dobrai a língua, ó insensato! Sei que é Word Star 2.0!".
Ao longo do livro, o shopping center não é apenas o principal cenário onde transcorre a ação, mas também mobiliza representações ambivalentes: a destruição de antigas casas (afetando as memórias de infância) no local onde seria construído pela empresa que "praticamente manda no país", mas também espaço do novo, de irresistível atração, um "parque de diversões"; local onde se conhecem pessoas, mas também marcado pela impossibilidade do encontro ("...o Shopping nunca vai deixar a gente se aproximar. Há esse vidro"). Quase ao final, na imaginação de uma personagem, uma bomba é programada para explodir ali no início de uma tarde, resultando num grande incêndio transmitido pela TV, quem sabe assinalando um momento em que o shopping não teria mais o mesmo significado em suas vidas.
Cabe ao leitor decidir se está disposto a adentrar nesse torvelinho, onde muitas vezes compartilhar o vivido pode ser mais importante do que dominar toda a trama.


Heitor Frúgoli Jr. é professor de antropologia na Universidade Estadual Paulista (Unesp-Araraquara) e co-organizador de "Shopping Centers" (Ed. Unesp).

No Shopping
Simone Silva Campos
7 Letras (Tel. 0/xx/21/540-7598)
72 págs., R$ 15,00


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