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A vida no deserto refrigerado
HEITOR FRÚGOLI JR.
Os shopping centers condensam uma modernização multifacetada, que se exprime nas estratégias do comércio varejista, nos
cenários arquitetônicos fechados
com relação à exterioridade, no
apelo planejado às compras (incluindo as supérfluas), em determinados estilos não apenas de
consumo, mas também de lazer e
de sociabilidade. Alguns estudos
já comprovaram seu caráter seletivo e excludente, sobretudo por
reforçar a segregação urbana, algo
que se consolida também em
muitas representações sociais a
seu respeito. Sem deixar de traduzir uma realidade, isso entretanto
não dá conta de um fenômeno paralelo, ligado à sua crescente massificação, à medida que os shoppings vêm também se situando
em contextos mais populares,
com a incorporação em seus corredores e "praças" de um público
bastante diversificado, incluindo
muitos adolescentes de baixa renda. Não obstante, tal fato tem alterado muito pouco a visão predominante a seu respeito.
Tendo sido escrito por uma estudante carioca de apenas 17
anos, o livro "No Shopping" poderia a princípio parecer apenas
uma publicação a mais, inserida
no atual filão voltado ao público
adolescente, com um título a sugerir, pelo que já foi dito, um
enredo pueril e consumista. Algo,
diga-se de passagem, sem o apelo
dos escritos nascidos de trajetórias dramáticas de jovens confrontados com realidades hostis
-periferia violenta, drogas, Aids,
Febem etc.-, ultimamente com
bastante receptividade.
Sua leitura, entretanto, surpreende em alguns aspectos, a começar pela linguagem, com um
texto cuja estrutura é marcada
por uma narrativa cortada e não
linear, muitas vezes próxima à
poesia. Por meio desses recursos,
a autora busca transmitir uma vivência onde o percurso de vida é
substituído por relatos secos e
curtos, expressando subjetivamente fragmentos da experiência
urbana de adolescentes de classe
média de sua geração, confinados
entre a escola e o shopping, imersos numa cultura do consumo.
O livro tem assim alguns méritos, ainda que não se não devam
criar grandes expectativas quanto
ao estilo, pois nele também podem naufragar sobretudo os leitores que pouco ou nada partilhem
do universo e do ritmo ágil ali
contidos. A própria autora parece
procurar manter propositadamente um texto cifrado, característico de certas formas de comunicação dessa faixa etária. Trata-se, de todo modo, de uma visão
construída "por dentro", narrada
na "primeira pessoa", sem críticas
a priori, mas tampouco traçando
um perfil glamouroso, o que permite um interessante olhar sobre
a fragmentação, dado permanente dessa experiência.
Inevitável retomar aqui a "estética do choque" proposta por
Walter Benjamin, típica da temporalidade cortada pelos múltiplos estímulos e proliferação de
imagens já presentes nos grandes
centros urbanos da passagem do
século 19, exacerbados e também
mais objetivados ao longo das últimas décadas. Com isso, delineia-se também uma experiência
cercada por apelos, signos e aparelhos de consumo individual.
Assim, os jogos de sedução entre Delia e Yuri transcorrem de
forma ora desleixada ora urgente
dentro do shopping, entre lanchonetes, corredores, vitrinas, escadas rolantes, butiques e vídeo-locadoras.
Ao seu modo, embriagam-se,
não propriamente da multidão,
mas de flashes de conversas entre
frequentadores: "-Não me faça
perguntas, Regina. Eu não gosto
de perguntas -disse o homem,
tragando o charuto. O executivo
respondeu assim quando a loura
de microssaia perguntou se ele
era casado. Delia pensou: "Ele vai
dizer: eu gosto é de respostas'".
No capítulo 9, único com título
-"O Multiplex"-, a autora convida com pressa o leitor à escolha
entre três trajetos na leitura -"O
Drama" (livre), "O Romance" (12
anos) e "A Violência" (16 anos)-
, tal como o consumidor que hoje
pode escolher entre vários filmes
espalhados por pequenas salas,
numa grade horária cada vez mais
cheia de opções. Diálogos rápidos
se multiplicam no telefone, no celular, no interfone, evidenciando
tanto a intensificação da comunicação quanto também do isolamento. Ocorrem relações ambíguas entre clientes e atendentes:
ora os primeiros esnobam os segundos por deterem o poder da
compra, ora são sutilmente esnobados pelos últimos, quando é incontestável que os possíveis compradores pertencem a uma classe
social menos favorecida. Um dos
programas na "praça de alimentação" é a ida ao "cibercafé" (que
oferece acesso à Internet), onde
uma mensagem irônica remete à
saudade dos aparelhos rapidamente tornados obsoletos: "Ah!
Que saudades da minha infância
tecnológica! Do meu XT de letras
verdes. 64 KB de RAM (...) Dobrai
a língua, ó insensato! Sei que é
Word Star 2.0!".
Ao longo do livro, o shopping
center não é apenas o principal
cenário onde transcorre a ação,
mas também mobiliza representações ambivalentes: a destruição
de antigas casas (afetando as memórias de infância) no local onde
seria construído pela empresa
que "praticamente manda no
país", mas também espaço do novo, de irresistível atração, um
"parque de diversões"; local onde
se conhecem pessoas, mas também marcado pela impossibilidade do encontro ("...o Shopping
nunca vai deixar a gente se aproximar. Há esse vidro"). Quase ao
final, na imaginação de uma personagem, uma bomba é programada para explodir ali no início
de uma tarde, resultando num
grande incêndio transmitido pela
TV, quem sabe assinalando um
momento em que o shopping não
teria mais o mesmo significado
em suas vidas.
Cabe ao leitor decidir se está disposto a adentrar nesse torvelinho,
onde muitas vezes compartilhar o
vivido pode ser mais importante
do que dominar toda a trama.
Heitor Frúgoli Jr. é professor de antropologia na Universidade Estadual Paulista (Unesp-Araraquara) e co-organizador
de "Shopping Centers" (Ed. Unesp).
No Shopping
Simone Silva Campos
7 Letras (Tel. 0/xx/21/540-7598)
72 págs., R$ 15,00
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