São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999 |
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A nudez de Laocoonte
JORGE COLI
Lessing conduz sua indagação. Há nele uma dupla vertente, "clássica" e "romântica", que incidiria fortemente, por sinal, no pensamento e na arte de Goethe. Lessing está empenhado em fugir dos modelos franceses para o teatro que, no século 18, sucumbiam sob convenções estéreis. Ele prefere levar a Alemanha para a proximidade de Shakespeare. Isto é: ele indica um caminho que seria, mais tarde, o do grande teatro romântico. Os próprios franceses iriam servir-se do grande bardo para libertarem-se dessas regras arcaicas, mas apenas 70 décadas depois que o "Laocoonte" tivesse indicado a direção salutar. Para as artes plásticas, porém, Lessing desenha um outro trajeto, mais "clássico" do que o do teatro, embora divergindo da harmonia transcendente de Winckelmann. Um classicismo que seria possível chamar de empírico e, num certo sentido, de realista. Lessing determina que as artes plásticas limitem-se à representação do visível. Elas devem encontrar uma harmonia, um equilíbrio, a partir daquilo que é possível colher pela observação. Uma seleção impõe-se -o artista pode criar algo mais elevado do que a natureza produziu, mas a partir da própria natureza, do modo como Zeuxis pintou sua Helena tomando o que de mais belo as mais belas moças de Crótona possuíam. Não cabem, está claro, nesta seleção, a feiúra ou a dor descontrolada -tão exploradas como efeitos pitorescos ou assustadores pela arte barroca. O que é concedido ao teatro, às formas evocativas e sensíveis da poesia -o feio, o asqueroso, o violento, "suavizados graças à expressão por meio de palavras"- é negado ao artista plástico. Lessing demonstra que o "Filocteto" de Sófocles é, legitimamente, muito mais violento do que o mármore do "Laocoonte". Deste modo, se Lessing nos permite vislumbrar o romantismo no teatro por meio da adesão a Shakespeare, ele indica também muitas das inflexões decisivas que serão tomadas pela pintura de David nos anos de 1780. Quando se afirmar o heroísmo neoclássico nas artes visuais, as considerações de Lessing permanecerão como horizonte mental. Toda a construção da pintura de David é feita por meio da análise do mundo visível, parte por parte, para ser remontada e cristalizada em tensão e nobreza. É uma arte que evita a ação: David irá proclamar a necessidade de se representar uma cena antes ou depois do acontecimento brutal, tal como Lessing determinara. Mais tarde ainda, o romantismo tão "clássico" de Delacroix parece seguir, com cuidado, as indicações de Lessing para figurar Medéia e seus filhos. Mais ainda: as roupas são possíveis na poesia, mas a nudez é essencial nas artes visuais (Lessing faz uma admirável comparação entre o Laocoonte vestido de Virgílio e o Laocoonte nu do grupo escultórico). David baseará suas obras nos personagens que são traçados, primeiro, nus, para em seguida serem vestidos, como se as roupas fossem consequência de uma anatomia respeitada e que se encontra sob elas. Os pintores barrocos, que desdobravam seus maravilhosos panejamentos, saem implicitamente condenados pelo texto e pela prática neoclássica que o sucedeu. Por trás do "Laocoonte" de Lessing transparece sempre a característica recusa iluminista da arte barroca, arte esta que destruira as fronteiras entre os diferentes gêneros artísticos, para dar-se numa constante interação. Lessing determina: poesia, arte do tempo; pintura, arte do espaço. A melancólica reflexão sobre a temporalidade trazida pela paisagem de sua época, pela pintura de ruínas, é combatida por obras que se projetam no intemporal. Concretamente, alguns anos depois: "O Juramento dos Horácios" contra Hubert Robert. Fora do tempo, o mundo visível transforma-se então em emblema ético ou político (1). Nota: 1. Sobre o espaço e o tempo no "Laocoonte" de Lessing, ver Mitchell, W. J. T. - "Space and Time: G. E. Lessing", in "Iconology - Image, Text, Ideology", The University Chicago Press, Chicago, 1986. Jorge Coli é professor de história da arte na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Texto Anterior: Gustavo Sorá: Antropologia e cultura nacional Próximo Texto: Luiz Costa Lima: Diáspora e reunificação Índice |
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