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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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Sexo e classe


Nova Divisão Sexual do Trabalho?
Helena Hirata
Tradução: Wanda Caldeira Brant
Boitempo (Tel. 0/xx/11/3875-7250)
336 págs., R$ 37,00


LILIANA SEGNINI

O crescimento quantitativo da participação da mulher no mercado de trabalho possibilita afirmar a existência de uma nova divisão sexual do trabalho?
A questão de Helena Hirata é formulada a partir da sistematização de pesquisas realizadas durante 20 anos sobre a temática "trabalho" em múltiplos enfoques, em diferentes países (Brasil, França, Japão), setores da economia e momentos históricos.
No período enfocado pela autora -décadas de 1980 e 90-, é inegável o crescimento da participação da mulher no mercado de trabalho. No entanto, essa mudança sociocultural é também econômica. Nesse mesmo período, observou-se a expansão do desemprego e de múltiplas formas de precarização do trabalho, bem como a flexibilização e outras tantas mudanças relacionadas às empresas e ao trabalho. Hirata mostra ao leitor os nexos constitutivos desses processos de mudanças, resgatando suas especificidades históricas e culturais nos diferentes países e setores enfocados.
Dessa forma, inscreve-se na tradição francesa da sociologia do trabalho, que parte da singularidade dos estudos empíricos para compreender as contradições das relações sociais mais amplas, articulando-as com as relações sociais de sexo. Reafirma assim a importância da compreensão da singularidade, do desvendamento e desconstrução de processos e relações de trabalho, procurando apreender rupturas, mudanças e permanências no contexto social mais amplo.
O domínio que tem a autora dos idiomas japonês, francês e português (além do inglês e espanhol) possibilitou que todas as entrevistas com trabalhadores e trabalhadoras nos países referidos fossem realizadas em suas próprias línguas de origem, condição "sine qua non" para a compreensão do significado dos discursos que informam relações sociais e subjetividades.
Ao comparar o trabalho industrial de filiais brasileiras com suas matrizes francesas e japonesas, tanto nas indústrias de produção em série (equipamentos elétricos e têxtil) como nas de processo contínuo (petroquímica), Hirata analisa o movimento de "destaylorização" nas matrizes. Salienta que, ao mesmo tempo, pode ser observado um crescimento da "taylorização" nas filiais no Brasil, ou mesmo em outros setores da própria unidade por meio do emprego de trabalhadoras. Ressalta, assim, as múltiplas possibilidades de divisão e organização do trabalho, considerando a mesma tecnologia empregada, e observa ainda que fatores de ordem sociocultural e histórica são fundamentais na implantação ou resistência às formas de controle e racionalização do trabalho, quer seja considerado o taylorismo ou as mais recentes formas de gestão participativas. "Nova Divisão Sexual do Trabalho?" amplia a compreensão dos problemas referentes às reestruturações da produção e suas implicações sociais por meio da observação de que postos de trabalho submetidos a controles de tempos e movimentos impostos, com baixo nível tecnológico e elevada intensidade de trabalho, tendem a ser ocupados por mulheres.
As mulheres também estão mais intensamente presentes do que os homens nas formas precárias de inserção no trabalho, como bem informa a comparação Brasil/França/Japão -por exemplo, na indústria do vidro. Tradicional espaço masculino de trabalho, nessa indústria as mulheres estão presentes na separação manual entre os pedaços de vidro quebrados e os resíduos, os quais não podem ser eliminados de outra forma. No Japão, são submetidas a contratos em tempo parcial; na França, às formas terceirizadas de trabalho; e, no Brasil, onde as condições de trabalho são quase insuportáveis em termos de salubridade, são consideradas trabalhadoras não-qualificadas. Cabe destacar que, em todos os países selecionados, observou-se que as mulheres têm maiores dificuldades para ter acesso aos programas de qualificação.
Considerando o deslocamento de empresas francesas em direção ao Brasil, Hirata informa que as trabalhadoras francesas foram as primeiras a estar desempregadas, antes mesmo que os homens, mesmo porque já ocupavam postos considerados de baixa qualificação em departamentos que foram transferidos para o Brasil.
Assim, mesmo considerando as diferenças históricas e sociais que imprimem singularidades nas relações de trabalho e emprego nos três países enfocados, é possível compreender que a perspectiva analítica da divisão sexual do trabalho amplia a compreensão dos fenômenos produtivos e sociais, ao informar assimetrias sociais traduzidas em hierarquias nos processos produtivos. Entretanto a autora alerta sobre o risco de reducionismo explicativo -"trabalho mais barato"-, se não forem consideradas questões culturais e subjetivas na elaboração das análises explicativas.
"A articulação entre as estruturas familiares e a esfera produtiva é muitas vezes desconhecida nos estudos sobre o emprego e a crise econômica", afirma Hirata. O impacto sobre os trabalhadores e trabalhadoras é quantitativamente e qualitativamente diferenciado. A divisão sexual do trabalho pode significar uma certa proteção para o emprego feminino, em decorrência da "especialização sexual do emprego", que tende a atribuir às mulheres atividades relacionadas com a esfera familiar, que requerem atividades e habilidades "femininas".
No entanto, não protegem da discriminação sexual: as mulheres tendem a permanecer no trabalho industrial, mesmo que em condições mais instáveis, mais precárias, deterioradas. O aumento da participação feminina no mercado de trabalho, no emprego industrial, é concomitante ao crescimento do trabalho em tempo parcial imposto, do trabalho temporário e dos contratos de duração determinada. As pesquisas nas indústrias manufatureiras foram somadas aos resultados referentes a outros setores e informaram a imbricação entre trabalho profissional e trabalho doméstico, produção e reprodução, bem como a importância das relações sociais de sexo nas formas de racionalização do trabalho.
Ao desconstruir o que poderia ser denominado uma "nova divisão sexual do trabalho", Helena Hirata afirma que o crescimento da participação da mulher no trabalho recria desigualdades, assimetrias, hierarquias, que permanecem relevantes na eficácia dos processos produtivos. No entanto a autora salienta que raciocinar em termos de relações sociais de classe e de sexo significa buscar contradição, antagonismo e tensão entre grupos sociais, inserindo assim uma dinâmica que não se petrifica jamais.

Liliana Segnini é professora titular de sociologia do trabalho na Unicamp e autora, entre outros livros, de "Mulheres no Trabalho Bancário" (Edusp).


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