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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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Diderot filósofo


Natureza e Ilustração. Sobre o Materialismo de Diderot
Maria das Graças de Souza
Ed. Unesp (Tel. 0/xx/11/3242-7171)
178 págs., R$ 22,00


VINICIUS DE FIGUEIREDO

"Filósofo que é filósofo faz sistema; Diderot não faz sistema; logo...". Esse silogismo explica por que, no Brasil, Diderot tenha habitado por um longo período o exterior da filosofia, naquela região de coisas que, embora interessantes, eram ignoradas pelo tipo de abordagem que demarcava, na visão acadêmica, a área dos estudos filosóficos. E foi onde permaneceu, até que trabalhos como os de Jacó Guinsburg e Franklin de Mattos, combinando análise literária, crítica e filologia, contribuíram para fazer desconfiar dos métodos de leitura que, buscando medir seu objeto a partir de uma acepção prévia do que seja a filosofia, terminam perdendo-a de vista. Em vez disso, não seria o caso de escutar o que Diderot tem a nos dizer sobre o que seja a filosofia e, partindo daí, redesenhar o mapa de nossas competências?
O livro recém-lançado de Maria das Graças de Souza, que traz a público seu doutoramento de 1990, leva adiante esse debate, refletindo suas questões de fundo. Logo no prefácio são arroladas as interpretações que cuidaram de enfrentar as dificuldades relativas à abordagem de um pensamento avesso às ferramentas analíticas usuais ao alcance do especialista universitário.
A novidade de "Natureza e Ilustração" está em que, para dar conta dos mesmos problemas, somos situados de pronto no centro do debate especulativo, do qual passamos a medir a envergadura de Diderot. Aos olhos da autora, portanto, já não bastará recordar que, no século 18 francês, o filósofo era alguém engajado na cultura, isto é, uma figura que sabia conversar, ia à ópera e tomava bons vinhos, e que a filosofia de Diderot, bem ao espírito da época, transcorre sob o signo do movimento. Pois qual o ganho em fazer do movimento a metáfora para a diversidade de gêneros e assuntos praticados por Diderot (e eles foram muitos: dos ensaios à crítica de arte, passando pelos verbetes para a "Enciclopédia", os diálogos, as traduções), se, conforme aquele silogismo de má vontade, o assunto, aqui, não é poesia nem metáforas: é filosofia?
A linha de interpretação escolhida por Maria das Graças está em que ela admite essa barreira (repitamos, de extrema má vontade) para neutralizá-la por dentro, revelando, sob o escritor ou o enciclopedista, "a figura do Diderot filósofo". Com efeito, ao cabo da leitura de "Natureza e Ilustração", poderemos retrucar ao mais empedernido partidário da filosofia pura que o movimento, antes de ser a metáfora da obra de Diderot, designa, de seu interior, o que ele interpreta como a verdade mais íntima da natureza.
É o que nos mostra Maria das Graças na primeira parte do livro. Inspirado em Lucrécio, mas também na biologia e na química de seu tempo, Diderot forjou, a partir da "Carta sobre os Cegos" (1749), uma cosmologia materialista conforme a qual o universo era de início matéria em movimento: "Na origem, a matéria em fermentação fazia o universo eclodir...". E o leitor se vê então conduzido ao acerto de contas de Diderot com a metafísica clássica.
Mas não só com ela: à diferença de deístas como Voltaire, que evocavam a ordem natural como prova da existência de Deus a partir dos efeitos, Diderot insiste na idéia de que essa ordem tem uma história alheia aos desígnios divinos. À maneira de Espinosa, para Diderot a marcha das coisas não evoca nenhuma transcendência. Ela corresponde à sucessão de variações assumidas, sem plano prévio, pela infinidade de átomos, em uma combinatória que explica a diversidade dos seres naturais, e que tem por único crivo a aptidão em adaptar-se à vida.
A consequência desse materialismo foi formulada por Voltaire nos termos da objeção de que, ao aceitá-lo, seríamos obrigados a atribuir pensamento e sentimento aos átomos -o que Diderot assumiu de bom grado, interpretando a força como energia. Assim, o universo, em perpétuo movimento, dispõe de uma ordem passível de ser transcrita em termos evolutivos, com essa ressalva decisiva: trata-se de uma evolução que, sublinha Maria das Graças, não precisa nem pode ser concebida por referência a alguma finalidade externa que comandasse os processos de transformação da matéria. De modo que a idéia de que a força não é puramente mecânica, já defendida por Leibniz no quadro do melhor dos mundos possíveis, é retomada por Diderot no seio de um materialismo que é um "finalismo imanente".
A segunda parte de "Natureza e Ilustração" apresenta as consequências desse materialismo antiteleológico para a compreensão da sociedade, ela também parte da natureza. As inúmeras atividades perseguidas por Diderot, tão ao gosto da Ilustração, revelam-se enraizadas em seu materialismo. Sua opção filosófica pela imanência faz subscrever uma história do mundo cuja medida, não podendo ser antecipada pelo homem, tampouco poderá ser imposta a ele por outros homens.
Só resta, então, ousar pensar por si mesmo e, daí, com os outros homens, o que é fazer coro ao lema da Ilustração, mas desafinando um pouco; é que Diderot inscreve os agentes em um universo que é "uma simetria passageira, uma ordem momentânea". Seguir avante, interpretando o mundo como sistema, é subscrever um equívoco cosmológico -e isso, mesmo se, com a passagem para Kant, cuidarmos de ver na finalidade simples princípio heurístico sobre o qual assentar a taxonomia natural e a referência das condutas à marcha histórica da humanidade. Pois, indagaria o Diderot interpretado por Maria das Graças, se é de filosofia que tratamos aqui, por que nos autorizarmos a fazer do sistema a metáfora da natureza?
Eis-nos de volta a nosso silogismo inicial, mas subvertido pelas conclusões de "Natureza e Ilustração". Diderot é filósofo -mas de uma filosofia que, esquivando-se na forma e no fundo à idéia de sistema, reclama de seu intérprete uma análise compreensiva de sua atividade filosófica. Seu núcleo especulativo, o materialismo, surge como o que motivou seu autor a dar atenção redobrada à carne dos acontecimentos de que se compõe a história natural e a história do homem. Daí talvez por que, concluirá o leitor, Diderot tenha transitado da política à crítica dos salões, num frenesi cuja coerência é da ordem do engajamento -prisma por meio do qual, mostrou Maria das Graças em outro livro, o diretor da "Enciclopédia" compreendeu a Ilustração.

Vinicius Berlendis de Figueiredo é professor de filosofia na Universidade Federal do Paraná (UFPR).


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