São Paulo, sábado, 10 de agosto de 2002

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Histórias

ELIAS THOMÉ SALIBA

História da Historiografia - Capítulos para uma História das Histórias da Historiografia
Rogério Forastieri da Silva
Edusc (Tel.0/xx/14/235-7111).
352 págs., R$ 33,00

O famoso epigrama de Namier, segundo o qual os "historiadores imaginam o passado e se lembram do futuro", ou seja, explicam o que aconteceu sempre tendo em mente os acontecimentos subsequentes, é sempre citado como uma fórmula pertinente, embora paradoxal, para descrever aqueles procedimentos cognitivos tácitos do trabalho do historiador. A leitura de "História da Historiografia" exemplifica muito bem o quanto o epigrama também é válido para um campo de estudos um tanto esquecido nos últimos anos: a história da historiografia.
O livro recupera os momentos mais significativos de uma história dos estudos historiográficos gerais. No amplo elenco analisado, entram tanto autores mais conhecidos, como Fueter ou Croce, do início do século 20, ou Georges Lefebvre e G.P. Gooch, de meados do mesmo século, quanto mais recentes, como Denis Hay e G. Iggers.
O que levou o autor a tão vasta empresa foi o questionamento da periodização gerada no embalo das novas tendências da historiografia associadas à Nova História. O objetivo inicial era examinar criticamente apenas a Nova História, mas acabou resultando numa análise detalhada de todas as questões relacionadas ao surgimento da história da historiografia como um setor autônomo no campo do conhecimento. O móvel do autor é, assim, a Nova História e a fetichização do novo que o impacto dessa tendência provocou na historiografia, aparentando resumi-la num único marco: antes e depois da Nova História.
"Ela não tem outra definição, senão a de que ela é as pessoas que eu encontro de manhã no elevador." Esse diagnóstico de François Furet, instado a definir a escola dos "Annales", apesar de brincalhão, acertara em cheio, pois o único elemento comum aos notáveis representantes da "Nouvelle Histoire" resumia-se à vinculação institucional: a 6ª Seção da "École", depois transformada em "École des Hautes Etudes en Sciences Sociales".
O sucesso da Nova História talvez tenha ocorrido exatamente por ela se constituir como uma nova religião de mistérios, destituída de um evangelho. Nesse aspecto, o livro de Forastieri convence mais pela acumulação de detalhes do que pela demonstração rigorosa de um argumento contrário, até porque a tese que coloca a Nova História no centro, criando um imaginário "antes e depois" na história, apesar de sua enorme popularidade, é muito trivial. Transferindo o epigrama de Namier para a história da historiografia, podemos notar, a partir da análise de Forastieri, o quanto os estudos a respeito dos escritos, métodos, interpretações e respectivas controvérsias entre os historiadores sofreram o impacto do sucesso posterior da Nova História -e isto, até nos rótulos viciados que até hoje ouvimos, repetidos por toda a parte, como "história positivista" ou, pior ainda, "história tradicional". A forma como o livro detalha o percurso das histórias gerais da historiografia já constitui um poderoso antídoto contra os efeitos perversos da demonização de todo o passado historiográfico, vulgarmente rotulado de "positivista".
A história da historiografia européia em sua feição moderna começa a tomar corpo no século 18, embora o desenvolvimento da crítica histórica nos séculos anteriores constitua um precedente decisivo. O cânone básico das histórias gerais da historiografia, segundo Forastieri, alimentou-se do paradigma nacionalista e caracterizou-se pela inexistência de um único critério classificatório de historiadores e de suas respectivas escolas. Para além dos modismos e rótulos estreitos, o livro de Forastieri é um guia bibliográfico -senão exaustivo, quase completo- das histórias gerais da historiografia européia, transformando-se num roteiro extremamente útil.
Claro que, em empreitada tão vasta, é impossível não assinalar algumas omissões importantes, sobretudo daqueles trabalhos não propriamente enquadrados no setor da história da historiografia. Os estudos gerais subestimaram em demasia a importância dos métodos de crítica documental, forjados no século 17, ignorando o papel que tiveram na própria historiografia iluminista.
Trabalhos importantes, como o de Anthony Grafton sobre a história das notas de rodapés (traduzido no Brasil com o equivocado título de "As Origens Trágicas da Erudição", ed. Papirus), mostraram que a história desse curioso detalhe ao pé da página impressa começa no século 17, quando os estudiosos de documentos passam a preocupar-se com as formas pelas quais iriam apresentar suas provas. Foram eruditos antiquários como o beneditino Jean Mabillon e o holandês Papenbroeck que, ao criarem as técnicas de crítica documental, lançaram a pedra fundamental das notas de rodapé. O texto convence, as notas provam. Seguindo esse conselho, os eruditos do século 17 colocavam todas as suas provas documentais num apêndice no qual se transcreviam, inteiramente, todos os documentos originais.
Em resumo, criava-se uma linha de surpreendente continuidade entre os antiquários do século 17, Thomas Bayle e Edward Gibbon no século 18 e, finalmente, Ranke e Buckhardt, no 19. Continuidade impossível de ser percebida nos estudos historiográficos gerais. Uma atenção mais demorada também deveriam receber aqueles estudos que cruzam perspectivas da historiografia com o clima filosófico vigente, como os de Enrico Gattinara, sobre os fecundos cruzamentos entre a epistemologia e a história na França, durante o período entre as guerras.
Tudo isso, afinal, não invalida o sólido trabalho do autor, incluindo uma das suas afirmações finais: "Se devemos procurar alguma ruptura na história geral da historiografia, esta não se situa da forma pela qual os defensores da "nova história" pretendem, mas sim em "historiografia moderna" e "historiografia pós-moderna'". A Nova História, nessa perspectiva, corresponderia a uma das últimas manifestações da historiografia moderna, sendo responsável inclusive pelo esgotamento do paradigma desta última. Insistindo na revisão crítica das periodizações da própria história da historiografia, o livro acaba por reafirmar a tarefa urgente de buscar uma outra racionalidade para a história, sempre vocacionada para captar o torvelinho da transformação social.


Elias Thomé Saliba é professor de história na USP e autor de "As Utopias Românticas" (Brasiliense).


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