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Estratégias da ciência
ALBERTO CUPANI
Na literatura filosófica
contemporânea não faltam, certamente, livros
sobre a relação da ciência com os valores. No entanto, a
presente obra há de despertar,
creio e espero, particular interesse.
Hugh Lacey já é conhecido dos
leitores brasileiros pelo seu trabalho "A Linguagem do Espaço e do
Tempo" (Perspectiva, 1972).
Australiano de origem e casado
com brasileira, este professor universitário lecionou na USP entre
1969 e 1971, pertencendo desde
então ao departamento de filosofia do Swarthmore College (Pensilvânia, EUA). Em diversas viagens, quase anuais, ao Brasil para
participar de congressos ou ministrar seminários, Lacey cultivou
muitas amizades e promoveu o estudo da filosofia da ciência. Por
sua vez, e por própria confissão,
esses laços com o Brasil tiveram
um "profundo impacto" no seu
pensamento, como se aprecia no
presente livro, pouco comum
dentro da tradição filosófica a que
se vincula.
Com efeito, não é frequente que
filósofos "analíticos" (se por tais
entendermos aqueles cuja preocupação é a análise conceitual rigorosa) abordem o tema do condicionamento social do conhecimento científico. Na maioria dos
casos, o que interessa a este tipo
de pensador são as questões intrínsecas àquele conhecimento,
tais como a distinção entre saber
científico e pseudociência, ou a
justificação lógica das explicações
científicas. Até os filósofos influenciados pela perspectiva historicista de Thomas Kuhn (como
no caso de L. Laudan em "Science
and Values") limitam sua análise
ao âmbito das idéias científicas,
ou, se se preferir, à dinâmica intelectual da comunidade científica
enquanto tal, deixando para a sociologia da ciência a exploração
das eventuais intromissões de fatores sociais (em sentido amplo)
na geração do conhecimento.
A pressuposição geral tácita dessa maneira de conceber a filosofia
da ciência é a de que a influência
de valores sociais (enquanto manifestação de interesses) é ilícita e
injustificável. Em outras palavras,
não haveria uma continuidade
conceitual entre os condicionamentos sociais e a índole das teorias e explicações científicas. A essa descontinuidade aludem, de diversas maneiras, as alegações de
"autonomia", "imparcialidade" e "neutralidade" da ciência.
São precisamente essas noções
que Lacey submete a uma minuciosa crítica. Para tanto, o livro
procede a uma análise das noções-chave de "entendimento" e
de "valor". A primeira designa
uma certa compreensão da realidade, variável conforme o contexto, o foco de interesse e os agentes
do discurso, que inclui sempre
afirmações sobre o que algo "é",
sobre "por que" ele é o que é e
sobre as "possibilidades" que
contém. O conhecimento científico (tal como encarnado nas ciências naturais exatas) é "uma"
forma de entender o mundo, que
se expressa tipicamente em teorias
que representam -supõe-se- o
mundo tal como ele é em si.
Seguindo Kuhn, Lacey nega essa
pretensão: o entendimento científico está sempre mediado pelos
"paradigmas", que Lacey prefere
conceber como "estratégias"
cognitivas. A ciência natural moderna procede conforme a estratégia "materialista" que obedece
sempre ao propósito de controle
da realidade, mesmo quando parece procurar o conhecimento
"por si mesmo". A vinculação do
conhecimento científico com o
controle se evidencia ao repararmos no papel central do experimento na ciência moderna. O experimento é a típica -e decisiva- situação de controle da natureza, a partir da qual o conhecimento estende-se, por extrapolação, aos âmbitos não sujeitos ao
controle humano.
A ciência, mediante as suas teorias, explica assim a realidade, não
em si mesma, mas numa específica vinculação com a prática e as
intenções humanas. A atitude
científica responde destarte a um
"valor" social determinado, tão
predominante na sociedade moderna que passa por óbvio, embora não o seja em toda sociedade.
A análise feita por Lacey da noção de "valor" (irredutível a um
significado único) é muito rica,
incluindo não só a sua caracterização e classificação, como também a distinção de suas formas de
manifestação (expressão, articulação, incorporação etc.). Vou limitar-me aqui à distinção entre
valores cognitivos e valores sociais, essencial para entender a
maneira como o autor concebe a
relação da ciência com as valorações.
A "imparcialidade" significa
para Lacey que uma teoria científica é corretamente aceita quando
os únicos valores que entram na
sua apreciação são os cognitivos
(adequação empírica, poder explicativo, consistência etc). Conquanto difícil, a imparcialidade é
um valor legítimo para Lacey.
A OBRA
Valores e Atividade Científica
Hugh Lacey
Tradução: Marcos B. de Oliveira, Eduardo Barra, Carlos Miranda e Pablo Mariconda
Discurso Editorial/FAPESP (Tel. 011/814-5383)
R$ 18,00, 222 págs.
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Isso não impede todavia que as
teorias "possíveis" dentro de um
tipo de "entendimento" do
mundo estejam condicionadas
pelos valores (sociais) próprios de
uma determinada "estratégia"
de pesquisa. Longe de serem
"neutras", as teorias geradas pela (e nela) ciência moderna respondem a uma estratégia que as
"seleciona" em função do interesse predominante de controle e
"restringe" as evidências relevantes àquelas pelas quais as entidades do mundo são captadas como passíveis de controle. A "neutralidade" da ciência, se por tal se
entende a pretensão de que as teorias científicas não têm compromisso com qualquer cosmovisão
("perspectiva de valor"), é falsa
para Lacey.
E, quanto à "autonomia", no
sentido de acreditar que as agendas da comunidade científica se
orientem exclusivamente pelo interesse de produzir teorias imparciais, embora não implausível, é
duvidosa, na medida em que uma
porção cada vez maior da pesquisa se dedica à busca da explicação
("imparcial") de fenômenos que
interessam a instituições não científicas.
Em resumo, os valores sociais
não podem intervir na determinação da "validade" do conhecimento (papel que cabe aos valores
cognitivos), porém eles intervêm
na determinação "teórica e prática" do "tipo de ciência" que (socialmente) se quer. A ciência é, assim, imparcial, às vezes autônoma, mas nunca neutra. A distinção entre valores cognitivos e sociais é crucial para o argumento
de Lacey (que elabora sua posição
em diálogo com teóricos como E.
McMullin e H. Longino, entre outros). Se se exagera o papel dos
primeiros, tende-se a conceber
equivocadamente a ciência como
completamente desinteressada.
Quando se descuida a distinção
daqueles valores com relação aos
sociais, não apenas se apaga a distinção entre ciência e ideologia,
como se torna inexplicável o sucesso cognitivo e prático da primeira.
As teses anteriores permitem a
Lacey propor uma sustentação
teórica para as críticas da ciência
moderna que, apontando seu
compromisso com os valores da
sociedade liberal capitalista, reivindicam a necessidade de um novo tipo de ciência a serviço da
transformação social. Esta é sem
dúvida a parte mais original do livro (capítulos seis a oito), em que
o autor argumenta convincentemente em favor da tese de que formas alternativas de teoria científica, igualmente "imparciais" (vale dizer, válidas e eficazes), requerem práticas sociais não permitidas pelo modelo social vigente.
Examinando criticamente idéias
de R. Bhaskar, Lacey defende a
importância de preservar e estimular práticas socioculturais alternativas (por exemplo, as populares na América Latina) como
germe de uma ciência socialmente
emancipadora.
Particularmente valiosa parece-me sua opinião de que o impasse representado pela circunstância de que uma ciência "nova" requer práticas que atualmente não são possíveis ou implicam riscos pode ser quebrado pela
decisão de fomentar as práticas,
forçosamente limitadas, que manifestam valores alternativos desejados, avaliando-as constantemente.
Os comentários anteriores não
esgotam os assuntos deste importante livro, surgido da reunião de
artigos previamente publicados, a
maioria em inglês. Cabe um alerta
aos tradutores: no capítulo final,
um erro na simbologia dificulta
compreender uma parte da argumentação. No conjunto, trata-se
de uma edição bem cuidada e
atraente.
Alberto Cupani é professor do departamento
de filosofia da Universidade Federal de Santa
Catarina.
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