São Paulo, sábado, 10 de outubro de 1998

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Três olhares sobre FHC

FÁBIO WANDERLEY REIS

Tempos atrás, a propósito de manifestações em que o presidente declarava que não é preciso ser burro para ser de esquerda, Wanderley Guilherme dos Santos comentou pelos jornais que tampouco é preciso ser burro para ser presidente, como o caso de Fernando Henrique Cardoso demonstra. À parte qualquer intenção irônica da observação de Santos, eis, de fato, a jóia rara de um presidente inteligente. O livro que resulta de entrevistas com Roberto Pompeu de Toledo, expandindo entrevista anterior publicada na "Veja", em setembro de 1997, impõe de novo essa constatação ao colocar-nos longamente diante da desenvoltura, a riqueza de informações e com frequência a argúcia com que o presidente trata de múltiplos assuntos de alguma forma relacionados ao governo do país. Para nós, afeitos a Figueiredos e Itamares, é certamente um luxo.
O livro contém relatos instrutivos, curiosos ou saborosos, às vezes, sobre numerosos eventos e figuras de uma carreira em que a atividade política bem-sucedida segue ao êxito singular como profissional das ciências sociais. Mas o interesse principal reside, naturalmente, naquilo que o título promete: ter as diretrizes e ações do presidente apreciadas analiticamente pelo sociólogo. Seria impróprio pretender que o rigor analítico fosse levado a níveis profissionais num volume que, como este, resulta da dinâmica algo fluida de entrevistas e se destina ao público em geral. De qualquer forma, alguns temas, dentre os muitos tratados, prestam-se melhor do que outros à avaliação desse aspecto.
Um ponto importante, mas analiticamente frágil, é a tentativa presidencial (capítulo quatro) de dar formulação abstrata ao tema da mudança social na atualidade. Ela resulta numa confusa teoria do "curto-circuito", que na verdade envolve certa abdicação irracionalista e com a qual se articula, de maneira também pouco clara, a tese da volta do ator ou do indivíduo na história, ao menos parcialmente em detrimento de supostos sujeitos coletivos tais como as classes sociais. A ela se pode ligar ainda o destaque dado ao "atraso" como categoria central na análise da política brasileira atual. Por um lado, a categoria é assimilada a "conservadorismo", mas em termos que não se superpõem à distinção entre direita e esquerda ("perpassa todos") e que parece desqualificar tal distinção, propondo implicitamente a modernidade como valor comum. Logo em seguida, porém, nos deparamos com uma concepção idealizada (e reiterada) dos partidos, que têm de agregar "valores" ou "conceitos", em contraste com os meros interesses -e o fato de os valores serem eventualmente "os mesmos para todos" é visto como resultando, de maneira inconsistente, na situação claramente negativa em que os partidos se "dissolvem", a direita não se assume como tal e a esquerda se perde na oposição pessoal ao presidente...
O tema da mudança remete, num plano mais concreto, ao da globalização, que se liga com a contribuição de FHC à teoria da dependência, além de corresponder a um componente crucial dos desafios de seu governo. As reflexões a respeito são talvez o ponto alto do volume, exibindo com clareza e força a percepção informada e sofisticada que tem o Presidente dos processos e dilemas envolvidos: a internacionalização do capital e dos mercados; seus aspectos tecnológicos e de "financeirização" e especulação; os efeitos perversos em termos de bem-estar social; o reconhecimento da impossibilidade de solução nacional para as questões e da necessidade de regras e instrumentos internacionais (eventualmente de um governo mundial), com suas conexões problemáticas com Estados Nacionais que se debilitam, mas seriam participantes indispensáveis no encaminhamento de soluções; e, em especial, o realismo lúcido na avaliação do significado que subsiste como possível para a idéia de afirmação nacional, percebida como devendo ocorrer no campo da cultura num mundo em que a inserção na dinâmica do capitalismo globalizado é um fato que se impõe como tal. Mas as aproximações feitas pelo presidente entre sua própria contribuição à teoria da dependência e os processos atualmente correntes omitem tanto o elemento de denúncia e a aposta socialista que se achavam presentes na primeira quanto o fato de que aquela denúncia redundava num nacionalismo, ao afirmar implicitamente o valor da autonomia nacional contra a dependência. E a ênfase de agora na cultura como o espaço próprio da afirmação nacional é uma clara mudança de perspectiva.
No reduzido espaço de que dispomos, um tema adicional merece realce: o que se refere ao modelo a ser implantado quanto ao papel do Estado. Curiosamente, há aqui um aparente recuo do presidente em relação a formulações mais ambiciosas que figuravam na entrevista do ano passado. Nesta se falava da busca de uma "nova social-democracia", capaz de controlar o mercado ao mesmo passo em que evitaria a burocracia, e na "radicalização da democracia", dando "mais acesso às decisões" e tornando o Estado "mais permeável". É sem dúvida difícil perceber como se traduzirão concretamente tais fórmulas, sobretudo em confronto com a forma específica de permeabilidade do Estado permitida pelos mecanismos neocorporativos da velha social-democracia. Em vez de seu esclarecimento, porém, encontramos agora, ao lado de certo apelo às organizações não-governamentais como elo entre o Estado e a sociedade, uma proposta de reconstrução do Estado em que se destacam duas vertentes fundamentais, vistas como de algum modo convergindo para uma "missão universalizadora" dele: a de permitir o crescimento da economia e a de atender as camadas mais pobres.
Os objetivos aí envolvidos são certamente inquestionáveis como definição abstrata do papel do Estado nas novas condições. Mas, para um governo com a marca intelectual do nosso presidente, são frustrantemente vagos diante das perplexidades com que nos enfrentamos. Celso Furtado falava há pouco, na imprensa, do abalo sofrido na atualidade pelo tripé em que a ação reguladora do poder público garantia certo tipo de equilíbrio entre empresas e massas trabalhadoras. Qual será a forma de atenção para as camadas mais pobres capaz de vir a ser resposta adequada a esse abalo em circunstâncias em que o nosso grande fosso social se torna o cenário para a afirmação do valor da competitividade -e portanto para o acirramento da competição em que uns ganham e outros perdem?


Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)



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