São Paulo, sábado, 11 de março de 2000


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EDIÇÃO COMEMORATIVA DE 5 ANOS
Tensões críticas do modernismo


Antonio Candido escreve prefácio a um estudo de João Lafetá sobre a crítica literária brasileira nos anos 30


1930 - O Modernismo e a Crítica
João Luiz Lafetá
Coleção Espírito Crítico
Duas Cidades/ Editora 34
(Tel. 0/xx/ 11/816-6777)
270 págs., lançamento previsto para abril

ANTONIO CANDIDO

Este livro foi um marco na crítica brasileira do nosso tempo, e a sua reedição faz pensar no quanto ela perdeu com a morte precoce de João Luiz Lafetá.
Lafetá era contido e exigente, não fazia questão de aparecer nem tinha pressa em publicar. O seu trabalho intelectual se processava com o lento rigor dos que desejam tirar de si mesmos o melhor possível, duvidando sempre do resultado. Rigor e tensão mental, frequentemente tingidos de angústia, caracterizavam o ritmo e o teor do seu esforço de crítico e docente. O cuidado com que preparava os cursos e a longa gestação de dúvidas que lhe custavam florescia em aulas que se pode considerar perfeitas, porque eram verdadeiras obras de arte didática. Usando o quadro-negro com precisão, desenvolvendo a explicação e intercalando os exemplos com domínio perfeito da matéria, era sempre pessoal, e o auditório talvez sentisse o quanto ele o respeitava, ao perceber a riqueza de informação e de reflexão embutidas no preparo, assim como o esforço de clarificação com que expunha as noções e os conceitos. E com certeza admirava o sereno equilíbrio da sua elocução, servida pela voz grave naturalmente empostada. O que não podia perceber era a natureza do esforço, da crispação angustiada que precedia aquele resultado; eram as horas de tentativa hesitante dissolvidas na harmonia da exposição.
Esse grande professor era um crítico finíssimo e cheio de talento, capaz de ler os textos de maneira original e de sobrevoar períodos e tendências com força integrativa. Prova é este livro, que não por acaso se tornou logo título essencial na bibliografia especializada. Nele, João Luiz Lafetá reinterpretou com espírito renovador o movimento geral do Modernismo brasileiro, como enquadramento e ao mesmo tempo finalidade implícita de um estudo sobre a crítica do decênio de 30 por meio de amostra significativa.
Teoricamente o seu objetivo é sugerir certas conexões entre literatura e ideologia, problema que tem feito correr rios de tinta; e quem navegou por eles bem sabe como são frequentes as tentativas malogradas, as formulações insatisfatórias e, sobretudo, as afirmações sem demonstração, pecado capital no trabalho crítico. Ora, este livro é impecável pela segurança com que soube adequar o proposto no plano teórico ao realizado no plano da análise.
Bem concebido e bem composto, repousa num par de conceitos que o autor manipula tanto no âmbito largo do período, domínio próprio da história literária, quanto no âmbito reduzido de cada obra, domínio da análise crítica. Explícita ou implicitamente, esse par interpretativo percorre o livro, não apenas dando-lhe unidade e coerência, mas operando a interpenetração dos níveis.
A proposta de Lafetá (desde logo incorporada ao elenco dos nossos estudos literários) se baseia no intuito de mostrar de que maneira o Modernismo se desdobrou como passagem do "projeto estético" dos anos 20 ao "projeto ideológico" dos anos 30. E é preciso salientar que ao estabelecer esta distinção ele não quis definir momentos estanques, mas fases de predominância, pois estético e ideológico se combinam nos dois momentos. Esta é uma das razões pelas quais o seu trabalho analítico é compreensivo e flexível, superando a rigidez das dicotomias, frequente nesse tipo de estudos. Inclusive porque tem sempre na mira o problema da linguagem como algo inseparável do teor das mensagens.
Nas suas palavras, "qualquer nova proposição estética deverá ser encarada em suas duas faces (complementares e, aliás, intimamente conjugadas; não obstante, às vezes conjugadas em forte tensão): enquanto projeto estético, diretamente ligada às modificações operadas na linguagem, e enquanto projeto ideológico, diretamente atada ao pensamento (visão de mundo) de sua época". E adiante: "Essa distinção, que pretendemos usar no exame de um aspecto do Modernismo brasileiro, é útil porque operatória; não podemos entretanto correr o risco de torná-la mecânica e fácil: na verdade o projeto estético, que é a crítica da velha linguagem pela confrontação com uma nova linguagem, já contém em si o seu projeto ideológico. O ataque às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver (ser, conhecer) de uma época; se é na (e pela) linguagem que os homens externam sua visão de mundo (justificando, explicitando, desvelando, simbolizando ou encobrindo suas relações reais com a natureza e a sociedade), investir contra o falar de um tempo será investir contra o ser desse tempo".

Quatro autores
Tendo exposto a sua posição, Lafetá se fixa na crítica como placa sensível, estudando quatro autores que representam quatro posições em face do Modernismo e lhe permitem analisar níveis diferentes na dialética dos "projetos": Agripino Grieco, Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), Mário de Andrade e Otávio de Faria. Utilizando os escritos que produziram no decênio de 30, consegue demonstrar o seu ponto de vista e esclarecer a dinâmica do Modernismo brasileiro à luz da consciência crítica. A ordem em que estuda os quatro autores segue a cronologia da respectiva entrada na vida literária, mas ao mesmo tempo gradua a variedade das posições em face da renovação modernista, de maneira a obter uma visão bastante completa.
Agripino Grieco vinha impregnado da atmosfera pós-parnasiana e, se aceitou o Modernismo, não chegou a penetrar na sua singularidade nem no que havia de diferença criadora na obra dos seus protagonistas. Lafetá ressalta a sua qualidade de crítico impressionista identificado ao espírito do jornalismo, que produz, não análises compreensivas, mas crônicas pitorescas, por vezes cintilantes de humor. É como se a renovação literária tivesse deslizado sobre ele sem modificar a sua visão arraigada nas fases anteriores, embora ele tenha usado, como os modernistas, a arma profilática do riso e do sarcasmo, em ataques irreverentes a figurões consagrados do mundo intelectual. Deste modo, contribuiu também na sua escala modesta para espanar a literatura do tempo, inclusive porque seus artigos atingiam um público numeroso, atraído pela sua verve.
O caso de Alceu Amoroso Lima é diferente, pois trata-se de um grande crítico, que trouxe contribuições importantes com os seus ensaios do decênio de 20, não apenas sobre os contemporâneos brasileiros, mas sobre estrangeiros então pouco divulgados aqui, como foi o caso do tratamento precoce e inteligente da obra de Marcel Proust, cujo último volume apareceu em 1926.
O estudo de seus escritos do decênio de 30 valeu como caso ideal para o desígnio de Lafetá, pois assim como o Modernismo estava segundo ele transitando do "projeto estético" para o "projeto ideológico", o mesmo se dava com a concepção de literatura de Alceu Amoroso Lima, que a partir de 1929 deixou de ser um intelectual disponível para tornar-se católico ardente e empenhado, depois de convertido por influência de Jackson de Figueiredo. Isso permitiu a Lafetá surpreender o embate dos dois "projetos" no interior de uma obra cujo autor desejava preservar a integridade do "estético", apesar de embebido de "ideologia" (religiosa) com fervor de neófito. Ele mostra, então, como Alceu Amoroso Lima viveu uma espécie de drama intelectual, ao querer preservar contraditoriamente os valores da tradição sem negar as experiências literárias contemporâneas. Daí uma ambiguidade que, no fundo, tem precedentes em sua fase anterior de relativa neutralidade ideológica, pois já nos anos 20 (assinala Lafetá) estava claro que, nele, o apreço pelo Modernismo era temperado pelo apego a tipos anteriores de literatura, segundo os quais tinham sido formados a sua mente e a sua sensibilidade.
Nos anos 30 essa tendência avulta e é reforçada pela opção católica, que o levou a simpatizar com a "ordem" (num sentido bem geral), oposta à "revolução" (também em sentido amplo), pois esta lhe parecia minar a sociedade contemporânea como elemento dissolvente. Daí o fato de encarar com simpatia as fórmulas políticas de direita, inclusive as de corte fascista. Esse pendor é analisado por Lafetá com acuidade e senso dos matizes; e como precisa respeitar os limites temporais do seu "corpus", pôde apenas mencionar que no decênio seguinte Alceu Amoroso Lima modificou essencialmente a sua posição, na esteira do pensamento cristão progressista coroado pelo processo de atualização, secularização e radicalização de muitos setores da Igreja Católica, acelerado nos anos 50. O leitor pressente que Lafetá teria gostado de entrar na análise dessa mudança, mais afinada com as suas convicções de esquerda.

O teórico do Modernismo
O caso de Mário de Andrade é especial, pois ele foi um dos líderes do movimento modernista nos anos 20 e não apenas o seu maior representante, mas o seu grande teórico. Não é portanto de estranhar que lhe seja dedicada a parte mais importante e atraente do livro, inclusive porque estuda posições que praticamente coincidem com as do seu autor.
Procurando penetrar o mais fundo possível na mente complexa e contraditória de Mário de Andrade, Lafetá recua até o começo do movimento modernista, a fim de mostrar como ele definiu o "projeto estético" nos dois escritos que constituem a sua plataforma teórica: o "Prefácio Interessantíssimo" (em "Paulicéia Desvairada") e "A Escrava Que Não É Isaura". Ambos denotam consciência crítica excepcional e propõem temas que Mário de Andrade trabalhará pela vida afora, notadamente a relação entre técnica e impulso criador, que aprofundaria nos anos 30. Para estudar as suas posições, Lafetá usa tanto os ensaios e artigos quanto certos poemas de conotação social, nos quais consegue localizar por dentro, isto é, no próprio tecido do discurso poético, a presença de idéias políticas, inseparáveis dos recursos de renovação da linguagem. E aí está o ponto de apoio desse capítulo, na medida em que mostra como Mário de Andrade teve a verdadeira consciência do problema, não apenas ao sentir e perceber, mas ao ser capaz de exprimir, tanto no plano da criação quanto no da teoria, a fusão inextricável dos dois "projetos". A análise lúcida com que Lafetá sugere essa posição é um verdadeiro feito crítico, seja pela capacidade de leitura, seja pela felicidade na escolha dos exemplos e a segurança de critérios teóricos. Por isso, é uma contribuição de primeira ordem para o debate complicado e frequentemente inconclusivo sobre as relações entre convicção e fatura nas obras literárias. Uma citação deixará claro o propósito deste capítulo:
"Procuraremos, na frente, mostrar como Mário de Andrade, na sua pesquisa de uma expressão nova, voltou-se para o estudo da psicologia da criação, buscando subsídios extraliterários que confirmassem as suas teorias estéticas e a sua concepção do poema como fato de linguagem. Em seguida, tentaremos mostrar como a preocupação de participar leva-o a incluir em seu esquema o dado sociológico, modificando sensivelmente várias das posições anteriores, mas mantendo -sempre- a consciência básica da linguagem, a noção da obra de arte como fatura e forma. A tentativa final é a de examinar -no interior dessas "consciências" (a obra como fato estético, como fato psíquico, como fato social)- a tensão entre projeto estético (a linguagem nova, da vanguarda) e projeto ideológico (participação na vida social)".
Este roteiro límpido é limpidamente seguido e demonstra a segurança de Lafetá no trabalho de resolver um problema difícil da crítica literária, pois (desculpem a insistência) consegue mostrar concretamente, por meio de uma análise lúcida dos textos, o que frequentemente permanece, mesmo em críticos bem dotados, no terreno da afirmação sem demonstração.


Bússola críticaBR> Agripino Grieco, apolítico, não tinha diretriz ideológica. Alceu Amoroso Lima era um agnóstico que, ao se converter ao catolicismo, imprimiu à sua crítica a subordinação do estético ao ético. Mário de Andrade foi um intelectual simpatizante da esquerda que soube manter a integridade da visão estética numa obra marcada pela participação ideológica. O quarto crítico abordado por Lafetá completa o circuito deste livro, pois Otávio de Faria, um dos ensaístas mais talentosos do fascismo no Brasil, procurou desqualificar com veemência o Modernismo dos anos 20 e a ficção social dos anos 30 (que a princípio tinha recebido com louvores).
Ao estudá-lo, Lafetá reformula o que denomina o seu "ponto básico", isto é, a indagação de "como o projeto ideológico contrasta com o projeto estético, nele interfere e às vezes o determina". Com efeito, neste capítulo final fica bem claro que a bússola crítica do livro é "a noção de que a literatura é linguagem, antes de mais nada"; e a consequência disso para o crítico é a convicção de que há uma "relação entre a linguagem e a visão do mundo". Por não compreendê-la, Otávio de Faria não compreendeu o Modernismo, como não percebeu que os desequilíbrios eventuais da novelística de cunho social dos anos 30 eram semelhantes aos dos seus próprios romances, caudalosos fracassos nos quais o peso ideológico de uma visão conservadora contribuiu para a sua insensibilidade estilística como prosador. E nesse passo Lafetá mostra que esquerda e direita podem se encontrar, quando conferem ao "projeto ideológico" um predomínio que oblitera o "projeto estético".
Ao fecharmos este livro tão bem concebido e realizado, e pararmos para pensar sobre ele, o sentimento principal é de admiração pela coerência e a força interpretativa com que o autor realizou o seu intuito, armado de uma firmeza teórica e uma imaginação crítica que fazem, mais uma vez, lamentar a sua falta.


Antonio Candido é crítico literário e autor, entre vários livros, do clássico "Formação da Literatura Brasileira" (Itatiaia).


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