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Um olhar arquitetônico
Casa Paulista
Carlos A.C. Lemos
Edusp (Tel. 0/xx/11/818-4149)
264 págs., R$ 45,00
CARLOS A. LEITE BRANDÃO
Aprendemos com a etimologia que "arquitetura" designa as
construções ("tectonicos") que contêm "arché", ou seja, os
vestígios da história e dos princípios que deram origem a uma
comunidade. Analogamente, consideramos "arquitetônico" o
olhar que, ao examinar os edifícios, captura não apenas
materiais, técnicas, formas e dimensões físicas, mas, sobretudo,
as marcas do humano aí impressas e os modos pelos quais são
colados no álbum do tempo o selo de nossos hábitos: mais do
que prédios, ele vê "habitações".
Esse olhar, raro nos estudos de arquitetura, o leitor encontrará
em "Casa Paulista". Com rigor, Carlos Lemos pesquisa a morada
"bandeirista", rural e urbana, do século 16 ao final do 19. Tal
objeto é analisado quanto à origem, evolução, uso, programa,
função, forma, sistema construtivo e adequação ao ambiente,
em texto claro e ricamente ilustrado.
Partindo do pioneirismo das construções iniciais, em que se
miscigenavam a herança ibérica e a experiência arquitetônica
indígena, até chegar nos confortos e modernidades importadas
pelo café e pelo ecletismo, o autor descreve a trajetória quase
épica da casa do "mameluco paulista", obrigado "a varar sertões
como se estivesse em casa" e a fundar nele sua habitação e seu
país, o "país dos paulistas". Lemos evita ir além dessas fronteiras.
Contudo, sendo essas fronteiras extremamente permeáveis, elas
acolhem diversas tradições, nacionais e estrangeiras. Ao
descrever essas tradições, ainda que sumariamente, o livro
também nos introduz no quadro mais vasto da arquitetura
brasileira. Mesmo porque a casa paulista serviu como raiz da
arquitetura de diversas outras regiões.
Quatro matrizes
O leitor terá a oportunidade de estudar detalhadamente quatro
grandes matrizes tipológicas, a começar pelos primórdios, entre
os séculos 16 e 18, onde se inicia a ocupação do território e se estrutura o protótipo da casa paulista. A seguir, aborda-se a época
açucareira, iniciada com o morgado de Mateus, em 1765, em que
aquele protótipo "caipira" ou se desenvolve com relativa autonomia ou se combina com a tradição mineira, muito influente
após a exaustão das catas auríferas.
Em dois capítulos, um dedicado ao vale do Paraíba e outro à
bacia do Tietê, o autor estuda o início do período cafeeiro. Nesse
período, meados do século 19, o partido bandeirista pode ser
percebido seja nas adaptações sofridas pela modesta casa do
açúcar, seja suportando as novidades trazidas pelo ouro verde e
que, de dentro para fora, alteram significativamente a residência
tradicional, como ao conferir maior especificidade ao uso de cada espaço. De modo mais sucinto, segue-se o estudo da casa do
litoral e a descrição da moradia "à francesa", própria do final do
século 19, à guisa de conclusão.
A taipa é o suporte dessa tradição e o verbo da cartilha construtiva mameluca. Lemos mostra como ela se flexiona entre os séculos 16 e 19; articula-se com outras técnicas, como a estrutura
autônoma de madeira; e rege as diversas frases com que se escreve a história dessa arquitetura, antes que o ecletismo a substituísse pelo tijolo. O historiador perscruta as frestas dessas paredes de
taipa, sente a dureza do piso da terra batida em que ela se assenta,
escuta o diálogo do barro com a madeira do telhado. Seu texto
exala o calor dos fogões, compreende o segredo das alcovas e da
intimidade familiar, estuda o ritmo das portas e janelas e as gradações entre o público e o privado. Acompanhando as descrições do espaço físico, lemos os depoimentos de moradores, registros de objetos e explicações de seu uso, cartas, testamentos e
diversos outros indícios da vida ali transcorrida.
Partindo da arquitetura da taipa e da descrição dos seus ambientes, o autor encontra uma trama de ecos e vivências a repercutir nas moradias e demonstrar como a verdadeira habitação
do homem não é o espaço físico, mas o espaço do tempo: a história. É o próprio autor que, numa citação à pág. 208, comprova o
caráter arquitetônico de um olhar que indaga pela "arché" enquanto examina o "tectonicos": "É através da descrição da sala
de jantar -o maior e talvez o mais importante aposento da casa- que o leitor toma conhecimento não só da sua arquitetura
mas do que ela continha de real e simbólico".
Memória histórica
O rigor da pesquisa e a clareza com que as análises são apresentadas ao leitor não escondem a paixão envolvida na feitura da
obra, fruto de anos de estudo desse arquiteto formado em 1950.
Essa paixão se reflete de várias formas: no cuidado com a redação, diagramação, seleção e tratamento das ilustrações; nos depoimentos e contidos desabafos acerca das dificuldades e perspectivas do trabalho da preservação de nossa memória histórica
e cultural; na tristeza com que se discorre sobre a foto de uma
moradia já demolida.
Entremeando o texto, o historiador não se furta a tecer considerações de ordem metodológica, como ao reportar sua discussão com Luís Saia a respeito da Casa do Padre Inácio. Nessas passagens, vemos seu apelo por uma atitude mais crítica no estudo
da história e no exame do acervo de nossa arquitetura, de modo
a ultrapassar a superficial descrição das obras e evitar conclusões
fáceis. Com liberdade, o texto se permite a tais digressões, em
que aflora a paixão do autor e o sabor emerge ao lado do saber. É
esse "sapere" que o espírito do leitor aprende a degustar.
"Casa Paulista" é uma lição de arquitetura. Isso não se deve
apenas ao modo didático com que é descrita a trajetória da casa
bandeirista. Indo além, o livro ensina a olhar a habitação e compreender o habitante, ensina como a cultura se faz arquitetura e
o espaço se faz história, ensina como o passado faceia o presente
e clama por reconhecimento. Daí, a sensação que nos habita
quando viramos a última página: a alegria de termos lapidado a
nossa tradição e nos refrescado nas águas da arquitetura brasileira.
É importante esse frescor, sobretudo num momento onde os
modismos se sucedem e o espírito não encontra silêncio diante
do novo e ruidoso ecletismo promovido pela mídia da arquitetura internacional. Nesse livro, Carlos Lemos nos devolve um chão
que temos esquecido de pisar e uma parede mais apta a suportar
os quadros da nossa história. A terra e a taipa com que foram feitos se tornaram mais sólidas depois de socadas pelo tempo e pelas vivências transcorridas. É essa identidade ética e compromisso histórico, a desafiar o esteticismo e fugacidade sem peso da arquitetura atual, que o leitor verá emergir como o verdadeiro sentido do abrigo bandeirista. Aprenda-se.
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Carlos Antônio Leite Brandão é arquiteto e professor da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais.
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