São Paulo, sábado, 11 de março de 2000


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O trabalho da hermenêutica


Benedito Nunes examina laços entre poesia e filosofia


Hermenêutica e Poesia - O Pensamento Poético
Benedito Nunes
Editora da UFMG (Tel. 0/xx/31/499-4650) 186 págs., R$ 19,00

FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

Compreender Heidegger talvez tenha de ser, sempre, retomar a tarefa de contornar o caráter inesgotável de uma meditação que, recusando as enunciações propositivas, assume o trabalho de interpretar as impossibilidades que o pensamento metafísico construiu para si próprio e que de alguma maneira permitiram que as realizações culturais da história do Ocidente ocorressem como atividades periféricas esquecidas do seu centro. Acompanhar Heidegger, inserir-se em seu modo de pensar, é assumir a negatividade implícita na memória metafísica e tentar vislumbrar as paisagens que ela recalcou nos extremos de um passado que é origem fundante e esquecida.
O livro de Benedito Nunes assume com coragem e serenidade essa tarefa de pensar a distância na ambiguidade de suas implicações, para compreender o significado mais íntimo dos laços que separam e aproximam poesia e filosofia. Atingimos primeiramente esse processo constitutivo de revelação e ocultamento, quando nos damos conta da indigência contida nas idéias de "filosofia da arte" ou "da literatura", na medida em que conotam a possibilidade de absorção da arte pela reflexão filosófica.
E isso nem tanto pela pretensão elucidativa que uma tal perspectiva comporta quanto pelo equívoco originário que supõe a completa separação como possibilidade de transposição ou tradutibilidade -engano que faz desaparecer o teor original do significado da distância que relaciona os dois modos de efetuação da linguagem, e que os gregos compreenderam quando falaram poeticamente da "physis" ("natureza") exatamente porque souberam entender a analogia fundamental entre a produção "poietica" da "physis" e a expressão poética do "logos".
Como o livro deriva de um conjunto de aulas ministradas sobre o tema, o texto conserva o andamento da exposição que se produz a partir da generosidade do pensador, que se dispôs a compartilhar não apenas o conhecimento profundo, mas sobretudo a afinidade e a familiaridade que lhe permitem desdobrar internamente a densidade da interrogação heideggeriana. Não se trata, portanto, somente de uma reflexão sobre a concepção de Heidegger acerca das relações entre poesia e filosofia. A interpretação se constrói como um pensar conjuntamente, que sabe tirar proveito daquilo que a interrogação irradia como possibilidade de um novo questionamento, que abala velhas respostas com a força da radicalidade de outras perguntas.
Esse outro horizonte de pensamento, no qual devemos construir uma aproximação da obra de arte que supere as pretensões da relação sujeito-objeto, abre-se pela via da hermenêutica. Mais do que um mero instrumento de abordagem objetiva, a hermenêutica se constitui como a elaboração de um contato entre dois contextos: o da produção da obra e o da apreensão do seu sentido. É, portanto, o encontro entre aquilo que a obra deve nos revelar e a nossa compreensão dos signos por meio dos quais se opera tal revelação. É nesse trabalho conjunto que se desvelam as figuras que na obra recriaram o mundo, de forma a que as coisas ditas ou representadas nos sejam dadas na significação, entendida como o caminho que vai do ocultar-se ao mostrar-se.

Dinamismo da hermenêutica
A característica principal da hermenêutica é, assim, o dinamismo da interpretação, atividade que se dá como uma passagem pelos caminhos da revelação que a obra nos proporciona. Lembremos que, para Heidegger, a relação entre o oculto e o desvelado não é uma "contrariedade", e sim uma "dualidade". O trabalho hermenêutico consiste em transitar por essa dualidade para provocar a manifestação do sentido, e a possibilidade de que isso ocorra está na "abertura" da obra à penetração interpretativa, que é por sua vez a "abertura" do sujeito, e que se origina na inquietude que a arte nos transmite, causa do movimento que constitui o encontro hermenêutico.
A hermenêutica nasceu do estudo dos textos sagrados, isto é, da inquietude que nos leva a tentar compreender aquilo que nos supera infinitamente, mas ao mesmo tempo nos compromete intimamente. Vê-se que é todo o pensamento de Heidegger que deve ser levado em conta para a compreensão da relação entre filosofia e poesia. Mas podemos, dentre esses múltiplos elementos, assinalar aquele que parece estar na base da opção hermenêutica: a imersão do "Dasein", a facticidade inerente ao estar-no-mundo, que neutraliza a separação contida na relação lógica sujeito-objeto e que constitui a pedra de toque da interpretação heideggeriana da fenomenologia, abrindo a possibilidade de que a ontologia venha a ser, por via do aparato fenomenológico, "interpretação", ou seja, compreensão do sentido do ente.
Com efeito, podemos dizer que a contemplação do quadro de Van Gogh, tal como nos é descrita em "A Origem da Obra de Arte", seria uma relação entre sujeito e objeto? Certamente se pode afirmar que estamos diante de um "objeto" e que, nesse sentido, pode-se conhecê-lo. Trata-se de um quadro assinado, no qual vemos a imagem de um utensílio, as botas -no caso, isoladas do seu contexto instrumental. Eis o que o quadro nos diz na exterioridade da apreensão objetiva.
No entanto, da obra, da "abertura" que a caracteriza, emerge algo, aderente àquilo que percebo, mas que também o ultrapassa e libera o que não seria objetivamente representável: tudo que não é objetivamente apreendido na imagem do utensílio, mas é liberado pela interpretação, que me faz aceder ao "mundo" a que a obra remete, contexto em que ela está singularmente posta e que se descortina quando atravesso a representação entitativa do instrumento e tomo contato com o seu "ser". Não mais descrevo o objeto, mas me abro ao que o instrumento revela, a partir de minha disposição para acolher essa revelação, desvelando a presença oculta.
O acontecer da verdade se opõe, então, à sua representação na relação sujeito-objeto. O existente humano não é, assim, o detentor da verdade, mas aquele que a desvela e a acolhe, atento ao seu acontecer.

O acontecer da verdade
Tal atenção significa a disposição existencial para ouvir o que a obra tem a nos dizer poeticamente. Poesia, nesse caso, é muito mais do que a modalidade de produção literária e bem mais do que a própria literatura. É o próprio acontecer da verdade na obra. Não é a obra que expressa a verdade; é a verdade que se expressa na obra, de acordo com o significado originário de "poiesis" como "autoprodução". O que esse poético revela permanece encoberto pela absorção representativa do sujeito de conhecimento. Por isso, a interpretação que acolhe a revelação do ser difere do conhecimento e, por isso também, a verdade que acontece em obra aflora num outro lugar que não a mediação entre sujeito e objeto.
Por essa razão, o pensamento que se dá como tarefa recuperar essa questão deve auscultar as camadas do dizer poético, em que o esquecido se preserva: é isto que significa promover um diálogo entre poesia e filosofia, considerando a distância aberta na linguagem e a proximidade do ser que a habita. É uma tarefa hermenêutica, porque consiste na interpretação da linguagem, naquilo que ela manifesta e naquilo que ela esconde. Essa tarefa parece ser o critério de organização do livro.
No núcleo central estaria o estudo do texto "A Origem da Obra de Arte", a meditação heideggeriana sobre a posição ontológica da obra de arte a partir do quadro de Van Gogh que representa as botas do camponês. Em torno dessa hermenêutica, o autor tece considerações compactas, mas elucidativas, acerca das implicações existenciais da relação entre a obra e o espectador.
As referências históricas, que procuram elucidar os diferentes modos de compreensão da associação entre o pensamento especulativo e a obra de arte, fornecem os subsídios necessários ao entendimento do compromisso que é preciso pensar, nas suas variações históricas e, principalmente, na sua origem. E é indicando esse compromisso que o livro de Benedito Nunes se conclui: pelo começo, pela superação, que é também um retorno às origens: o "pensar poético" ou o "poetar pensante".


Franklin Leopoldo e Silva é professor de filosofia na USP e autor de "Bergson - Intuição e Discurso Filosófico" (Loyola).


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