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O avesso da cidadania
Pobreza e Cidadania
Vera da Silva Telles
Editora 34 (Tel. 0/xx/11/3816-6777)
167 págs., R$ 16,00
EVELINA DAGNINO
Para quem acompanha o debate sobre a sociedade brasileira contemporânea, os temas tratados neste livro são habituais. O que está longe de
ser habitual é o tratamento que recebem na análise aguda de Vera da
Silva Telles.
As figurações da pobreza e da desigualdade, do direito e da cidadania
são aqui viradas do avesso: revelar suas ambivalências e paradoxos é o
procedimento dos ensaios que compõem "Pobreza e Cidadania".
Escritos entre 1992 e 1998, são precedidos de uma introdução desalentadora, na qual a autora assinala a inflexão que as mudanças na sociedade brasileira impuseram às referências que balizavam o tratamento da
questão social na década de 80. Se estas se inseriam numa perspectiva
de que a construção de uma sociedade mais justa e igualitária era possível, tendo como parâmetros a ampliação da cidadania, hoje o cenário
seria outro. Para a "lógica imperativa dos mercados globalizados", o
que era sinal de atraso aparece como marca de nossa modernidade,
transformando a pobreza num dado incontornável.
Tarefa difícil é isolar os eixos fundamentais da complexa análise de
Vera Telles, sem simplificar sua riqueza inovadora. Um primeiro eixo
se localiza na análise das relações entre cidadania e pobreza. Confrontando as figurações da pobreza que, até hoje, a colocam no terreno da
natureza ou da patologia, como resíduo ainda não alcançado pela modernidade, ela é aqui vista como o avesso da cidadania. Afirmar a antinomia entre elas é trazer a pobreza para seu terreno próprio, que é o da
justiça e da igualdade, concebidas não em referência às necessidades vitais, às condições mínimas de sobrevivência, mas ao contrato social e às
regras que constituem a vida em sociedade.
Mas como nada aqui é linear e simples, é preciso desvendar a relação
perversa que se constituiu entre a pobreza e a versão brasileira de cidadania: uma cidadania dissociada de um código universal de valores políticos, que carrega a marca da sua origem em um Estado tutelar e corporativo e que, ao conceder direitos sociais como recompensa ao cumprimento do dever do trabalho, repõe hierarquias, sacramenta desigualdades, produzindo "a fratura entre a figura do trabalhador e a do
pobre incivil". Entendida a partir desse paradoxo, a pobreza pode ser
vista como o lugar dos que não têm existência cívica, o lugar dos não-direitos e da não-cidadania, da destituição, onde "a justiça se transforma em caridade e os direitos em ajuda a que o indivíduo tem acesso não
por sua condição de cidadania, mas pela prova de que dela está excluído".
Perversa e capenga, essa cidadania advinda da condição de trabalhador parece, no entanto, fazer falta. Quando Telles analisa as transformações mais recentes no mercado de trabalho, em que o desemprego, a
instabilidade e a precarização nos vínculos de trabalho passam a marcar cada vez mais a experiência contemporânea do trabalhador, tornando muito tênue ou inexistente a fronteira que o distingue do pobre
incivil, a privação da representação sindical e do exercício de direitos é
lamentada como perda no processo de construção de identidades.
Um segundo eixo de análise se articula ao redor do significado que assumem essas figurações da questão social para a constituição de um
imaginário democrático. Aqui a autora reforça uma corrente, já consolidada e da qual que ela própria é uma das pioneiras no Brasil, que enfatiza as concepções de cidadania e de direitos em sua qualidade de elementos culturais, capazes de engendrar formas mais igualitárias de relação social. Para além das consequências dramáticas da pobreza e da
exclusão, o que essa corrente procura revelar é a hierarquização e o autoritarismo das relações sociais que esse drama esconde.
Incapaz de forjar a civilidade e o civismo, a cidadania brasileira não
consegue instituir os direitos como normas da convivência social cotidiana no espaço público, de modo a estabelecer entre os indivíduos um
vínculo propriamente civil. O não-reconhecimento do outro como sujeito de interesses, o juízo moral erigido em regra pública constituem
uma incivilidade que desmente a igualdade prometida pela lei.
Finalmente, no ensaio que encerra o volume, esses eixos de análise
confluem na discussão das consequências políticas e simbólicas das
transformações dos últimos anos, quando a modernidade finalmente
chegou, acompanhada do desmanche de direitos e da invasão progressiva do "mundo do trabalho" pelo seu avesso, o "universo da pobreza".
O atraso se apresenta como modernidade quando a pobreza e a desigualdade são alijadas do debate político e outra vez deslocadas para a
condição de fenômenos regidos pelas leis da natureza (agora em sua
versão moderna, que são os "imperativos de crescimento" da economia), a serem tratados pela gestão técnica ou filantrópica. Os direitos e a
cidadania, formulados como promessa da modernidade, se convertem
por sua vez em figuras do atraso, anacronismos "que obstam a potência
modernizadora do mercado".
Nessa despolitização da questão social, exemplarmente prenunciada
pela extinção do Conselho de Segurança Alimentar (esforço conjunto
do Estado e da sociedade civil contra a pobreza, que afirmava a alimentação como "bem público e direito universal') e pela instituição do programa Comunidade Solidária, nos primeiros dias do governo FHC, localiza-se o principal desafio a ser enfrentado.
Ao lado da progressiva anulação das conquistas obtidas na Constituição de 1988, a "neutralização da tessitura democrática construída na interface entre Estado e sociedade" e um "encapsulamento comunitário
ao revés dos princípios universalistas da igualdade e da justiça" contribuem para "erodir a própria noção de direitos e cidadania", instituindo
uma outra forma de gestão do social. Principal recurso dessa forma de
gestão, o apelo à solidariedade se restringe à responsabilidade moral da
sociedade, bloqueando a sua dimensão política e desmontando as referências ao bem público, penosamente construídas desde os anos 1980.
A distribuição de serviços e benefícios sociais passa cada vez mais a
ocupar o lugar dos direitos e da cidadania, obstruindo não só a demanda por direitos -não há instâncias para isso, já que essa distribuição
depende apenas da boa vontade e da competência dos setores envolvidos- mas, mais grave, obstando a própria formulação dos direitos e da
cidadania e a enunciação da questão pública.
Quando se processa a desmontagem das mediações institucionais e
políticas que possibilitam que o direito possa ser formulado, reivindicado e instituído como parâmetro na negociação do conflito, o significado da idéia da pobreza como denegação de direitos se completa. Se essa
forma de gestão do social e as referências que institui vierem a se consolidar sem reação, o desalento da autora não terá sido infundado.
Evelina Dagnino é professora de ciência política na Universidade Estadual de Campinas e
organizadora, entre outros, do volume "Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil" (ed.
Paz e Terra).
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