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Viagem iniciática
O diário de uma expedição com Lévi-Strauss
Um Outro Olhar - Diário da
Expedição à Serra do Norte
Luiz de Castro Faria
Heloísa Bertol Domingues (org.)
Ouro sobre Azul (Tel. 0/xx/21/2527-1230)
216 págs, R$ 90,00
BEATRIZ PERRONE-MOISÉS
Em 1938, Claude Lévi-Strauss, que havia lecionado na recém-fundada Universidade de São Paulo entre 1935 e 1936, retornava ao Brasil para liderar uma expedição, programada para durar por volta
de um ano, seguindo o trajeto realizado
30 anos antes pelo marechal Rondon.
Munido de questões teóricas específicas
quanto aos povos indígenas da América,
Lévi-Strauss pretendia atravessar uma
porção muito pouco explorada do Brasil.
A "Expedição à Serra do Norte", como ficou conhecida, durou de junho a dezembro de 1938, percorrendo a região das serras do Juruena e Gi-Paraná, no Mato
Grosso.
Integravam a expedição, além de Lévi-Strauss, sua então mulher, Dinah Lévi-Strauss, e um naturalista e médico, Jehan
Véllard -todos estrangeiros, portanto.
O Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas, então encarregado de controlar a saída de objetos de
cultura material do país, exigia que um
brasileiro integrasse a expedição, na condição de fiscal. Em virtude de um acordo
entre Mário de Andrade, diretor do Departamento de Cultura do Município de
São Paulo, que financiava a expedição, e
Heloísa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional do Rio de Janeiro, foi escolhido para desempenhar esse papel o jovem Luiz de Castro Faria, então com 24
anos. Seria o seu primeiro trabalho de
campo, seu "batismo" como etnólogo,
"verdadeiro ritual de iniciação", em suas
próprias palavras (embora, ao contrário
do que afirma, não fosse esse o caso de
Lévi-Strauss, já "iniciado" no campo).
Durante mais de seis décadas, Castro
Faria guardou consigo seu diário, seus
desenhos e aproximadamente 800 fotos,
realizados durante a expedição. "Um Outro Olhar" traz à luz parte desse valioso
acervo. O título dado à publicação convida à comparação com o olhar de Lévi-Strauss, embora isso só possa ser feito de
modo indireto, já que "Tristes Trópicos",
obra em que este último fala, entre outras
coisas, da expedição de 1938, não é um
diário. Aqui, ao contrário, trata-se de oferecer ao leitor o diário e parte das fotos de
Castro Faria como documento primário.
"Este livro" -anuncia a organizadora
em sua introdução- "é uma composição das fotografias e o diário de campo de
Luiz de Castro Faria, concebido em seis
capítulos que obedecem ao trajeto percorrido pela expedição e recortados de
acordo com as paradas nos principais
postos telegráficos e passagens pitorescas". A publicação conta ainda com três
textos introdutórios, o primeiro de autoria de Heloisa Bertol Domingues, que recapitula a história dessa que foi, em suas
palavras, "a última expedição etnográfica
do século 20". Mais dois textos -um assinado por Afrânio Raul Garcia Jr. e Gustavo Sorá, que relembra a importância de
Castro Faria na consolidação do ensino e
pesquisa em antropologia no Brasil, e outro, de Patricia Monte-Mór, dedicado ao
"antropólogo-fotógrafo"- introduzem
o diário e as fotos.
O leitor começa então a acompanhar a
expedição, a partir de 18 de abril de 1938,
dia em que Castro Faria chega a São Paulo para os preparativos da viagem. Até
chegar com ele a Belém, em 3 de janeiro
de 1939, o leitor terá percorrido de trem,
de barco, de caminhão e de montaria, por
meio de anotações no diário, desenhos e
fotos, um pedaço então pouco conhecido
do Brasil.
A primeira coisa que chama a atenção é
a duração e frequência dos momentos de
espera e preparativos. Desde o início, a
expedição enfrenta percalços de ordem
prática e burocrática, e Castro Faria em
alguns momentos deixa transparecer a
aflição das esperas, a sensação de que
tempo demais era gasto sem "estudo" nenhum a fazer. De todos os problemas,
Castro Faria parece lamentar apenas não
poder colher mais informações, por falta
de oportunidade ou de tempo.
Expedição fracassada?
Na entrevista concedida a Mario Cesar
de Carvalho, publicada no caderno
"Mais!" da Folha (16/12/2001), Castro Faria declara que a "expedição foi um fracasso", pois nunca passava num mesmo
local tempo suficiente para que se pudesse aprender alguma coisa sobre os índios.
"Fracasso" certamente discutível, quando se considera o que dela resultou na reflexão de Lévi-Strauss. Castro Faria, de
qualquer modo, parece ter aproveitado
ao máximo as longas esperas e curtas estadas, anotando em seu diário tudo o que
poderia ser de algum interesse etnológico, tanto em relação às culturas indígenas
quanto em relação às culturas regionais.
Desde o início da viagem, percebe-se
nele um interesse especial pelas formas
de habitação, sempre cuidadosamente
descritas, desenhadas e fotografadas. Outros temas são igualmente recorrentes.
Os registros de cultura material são numerosos, contando com detalhadas descrições das técnicas associadas aos objetos, que as fotos, como uma espécie de
"passo a passo", mostram.
Por meio das fotos, acompanhamos a
fabricação do curare pelos nambiquaras
ou a preparação da borracha pelos seringueiros. Em cada parada, Castro Faria vai
registrando dados linguísticos: são listas
de vocabulário em língua indígena, letras
de cantigas e um interessante registro de
"linguagem intermediária", espécie de
língua franca utilizada por missionários e
outros brancos no trato com os nambiquaras.
Entre os inúmeros dados registrados
no diário, há várias anotações sobre conhecimentos e práticas medicinais locais
e indígenas, vestimentas e adornos corporais, tradições e fragmentos de cosmologia, danças e música. A música, aliás,
aparece em lugar de destaque, nas raras
noites agradáveis que pontuam as dificuldades, o registro seco de dados, a monotonia das esperas: a sanfona dos bailes
e as "flautas mágicas" dos nambiquaras
dão a Castro Faria a oportunidade de externar profundas emoções. Excetuando-se tais "noites inesquecíveis", há dias em
que o diário registra impressões poéticas
sobre a paisagem, outros em que se lêem
apenas listas de palavras; noutros, ainda,
a lacônica e consternada constatação de
que não há nada a fazer. E, de modo geral,
a seriedade com que um etnólogo iniciante tratava de registrar cuidadosamente, em palavras, desenhos e fotos, o
maior número de dados possível.
O diário é um tipo de "documento primário" que não se pode discutir teoricamente, mas sugere a possibilidade de diversas análises e comentários. Nesse sentido, devo observar que as notas que se
encontram no final do volume, que poderiam enriquecer a leitura, causam certa
perplexidade. Várias delas, relativas aos
grupos indígenas nomeados, interessariam apenas a especialistas, que não precisam que se lhes explique que certas
anotações remetem à antropometria e
outras constituem "referência bibliográfica". Não se sabe, afinal, a quem se dirigem tais notas que infelizmente pouco
acrescentam à leitura.
O projeto gráfico do livro é notável,
pondo em relevo as fotografias de Castro
Faria, de modo que constitui, em si, uma
leitura desses documentos. A identidade
brasileira, por sua vez, perpassa todo o
texto de Faria, que sofre com a destruição
de recursos naturais e a miséria das pessoas e cidades de seu país, encanta-se
com a beleza das paisagens e com as manifestações de cultura popular. Apaixonado pelo Brasil, o jovem etnólogo, ao
contrário do chefe da expedição, ama as
viagens e a condição de explorador. As
epígrafes, de sua autoria, falam exatamente desse amor pelo Brasil, da necessidade de conhecê-lo de perto e do prazer
de viajar trabalhando, reservado ao etnógrafo. Uma observação do próprio Faria,
a respeito de uma noite de boa música
bem brasileira, poderia descrever a sensação de rever uma expedição realizada
há 64 anos: "Faz lembrar um passado que
a gente não viveu, mas que ficou também
de herança...".
Beatriz Perrone-Moisés é professora de antropologia na USP.
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