São Paulo, sábado, 11 de maio de 2002

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Viagem iniciática

O diário de uma expedição com Lévi-Strauss

Um Outro Olhar - Diário da Expedição à Serra do Norte
Luiz de Castro Faria
Heloísa Bertol Domingues (org.)
Ouro sobre Azul (Tel. 0/xx/21/2527-1230)
216 págs, R$ 90,00

BEATRIZ PERRONE-MOISÉS

Em 1938, Claude Lévi-Strauss, que havia lecionado na recém-fundada Universidade de São Paulo entre 1935 e 1936, retornava ao Brasil para liderar uma expedição, programada para durar por volta de um ano, seguindo o trajeto realizado 30 anos antes pelo marechal Rondon. Munido de questões teóricas específicas quanto aos povos indígenas da América, Lévi-Strauss pretendia atravessar uma porção muito pouco explorada do Brasil. A "Expedição à Serra do Norte", como ficou conhecida, durou de junho a dezembro de 1938, percorrendo a região das serras do Juruena e Gi-Paraná, no Mato Grosso.
Integravam a expedição, além de Lévi-Strauss, sua então mulher, Dinah Lévi-Strauss, e um naturalista e médico, Jehan Véllard -todos estrangeiros, portanto. O Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas, então encarregado de controlar a saída de objetos de cultura material do país, exigia que um brasileiro integrasse a expedição, na condição de fiscal. Em virtude de um acordo entre Mário de Andrade, diretor do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, que financiava a expedição, e Heloísa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional do Rio de Janeiro, foi escolhido para desempenhar esse papel o jovem Luiz de Castro Faria, então com 24 anos. Seria o seu primeiro trabalho de campo, seu "batismo" como etnólogo, "verdadeiro ritual de iniciação", em suas próprias palavras (embora, ao contrário do que afirma, não fosse esse o caso de Lévi-Strauss, já "iniciado" no campo).
Durante mais de seis décadas, Castro Faria guardou consigo seu diário, seus desenhos e aproximadamente 800 fotos, realizados durante a expedição. "Um Outro Olhar" traz à luz parte desse valioso acervo. O título dado à publicação convida à comparação com o olhar de Lévi-Strauss, embora isso só possa ser feito de modo indireto, já que "Tristes Trópicos", obra em que este último fala, entre outras coisas, da expedição de 1938, não é um diário. Aqui, ao contrário, trata-se de oferecer ao leitor o diário e parte das fotos de Castro Faria como documento primário.
"Este livro" -anuncia a organizadora em sua introdução- "é uma composição das fotografias e o diário de campo de Luiz de Castro Faria, concebido em seis capítulos que obedecem ao trajeto percorrido pela expedição e recortados de acordo com as paradas nos principais postos telegráficos e passagens pitorescas". A publicação conta ainda com três textos introdutórios, o primeiro de autoria de Heloisa Bertol Domingues, que recapitula a história dessa que foi, em suas palavras, "a última expedição etnográfica do século 20". Mais dois textos -um assinado por Afrânio Raul Garcia Jr. e Gustavo Sorá, que relembra a importância de Castro Faria na consolidação do ensino e pesquisa em antropologia no Brasil, e outro, de Patricia Monte-Mór, dedicado ao "antropólogo-fotógrafo"- introduzem o diário e as fotos.
O leitor começa então a acompanhar a expedição, a partir de 18 de abril de 1938, dia em que Castro Faria chega a São Paulo para os preparativos da viagem. Até chegar com ele a Belém, em 3 de janeiro de 1939, o leitor terá percorrido de trem, de barco, de caminhão e de montaria, por meio de anotações no diário, desenhos e fotos, um pedaço então pouco conhecido do Brasil.
A primeira coisa que chama a atenção é a duração e frequência dos momentos de espera e preparativos. Desde o início, a expedição enfrenta percalços de ordem prática e burocrática, e Castro Faria em alguns momentos deixa transparecer a aflição das esperas, a sensação de que tempo demais era gasto sem "estudo" nenhum a fazer. De todos os problemas, Castro Faria parece lamentar apenas não poder colher mais informações, por falta de oportunidade ou de tempo.

Expedição fracassada?
Na entrevista concedida a Mario Cesar de Carvalho, publicada no caderno "Mais!" da Folha (16/12/2001), Castro Faria declara que a "expedição foi um fracasso", pois nunca passava num mesmo local tempo suficiente para que se pudesse aprender alguma coisa sobre os índios. "Fracasso" certamente discutível, quando se considera o que dela resultou na reflexão de Lévi-Strauss. Castro Faria, de qualquer modo, parece ter aproveitado ao máximo as longas esperas e curtas estadas, anotando em seu diário tudo o que poderia ser de algum interesse etnológico, tanto em relação às culturas indígenas quanto em relação às culturas regionais.
Desde o início da viagem, percebe-se nele um interesse especial pelas formas de habitação, sempre cuidadosamente descritas, desenhadas e fotografadas. Outros temas são igualmente recorrentes. Os registros de cultura material são numerosos, contando com detalhadas descrições das técnicas associadas aos objetos, que as fotos, como uma espécie de "passo a passo", mostram.
Por meio das fotos, acompanhamos a fabricação do curare pelos nambiquaras ou a preparação da borracha pelos seringueiros. Em cada parada, Castro Faria vai registrando dados linguísticos: são listas de vocabulário em língua indígena, letras de cantigas e um interessante registro de "linguagem intermediária", espécie de língua franca utilizada por missionários e outros brancos no trato com os nambiquaras.
Entre os inúmeros dados registrados no diário, há várias anotações sobre conhecimentos e práticas medicinais locais e indígenas, vestimentas e adornos corporais, tradições e fragmentos de cosmologia, danças e música. A música, aliás, aparece em lugar de destaque, nas raras noites agradáveis que pontuam as dificuldades, o registro seco de dados, a monotonia das esperas: a sanfona dos bailes e as "flautas mágicas" dos nambiquaras dão a Castro Faria a oportunidade de externar profundas emoções. Excetuando-se tais "noites inesquecíveis", há dias em que o diário registra impressões poéticas sobre a paisagem, outros em que se lêem apenas listas de palavras; noutros, ainda, a lacônica e consternada constatação de que não há nada a fazer. E, de modo geral, a seriedade com que um etnólogo iniciante tratava de registrar cuidadosamente, em palavras, desenhos e fotos, o maior número de dados possível.
O diário é um tipo de "documento primário" que não se pode discutir teoricamente, mas sugere a possibilidade de diversas análises e comentários. Nesse sentido, devo observar que as notas que se encontram no final do volume, que poderiam enriquecer a leitura, causam certa perplexidade. Várias delas, relativas aos grupos indígenas nomeados, interessariam apenas a especialistas, que não precisam que se lhes explique que certas anotações remetem à antropometria e outras constituem "referência bibliográfica". Não se sabe, afinal, a quem se dirigem tais notas que infelizmente pouco acrescentam à leitura.
O projeto gráfico do livro é notável, pondo em relevo as fotografias de Castro Faria, de modo que constitui, em si, uma leitura desses documentos. A identidade brasileira, por sua vez, perpassa todo o texto de Faria, que sofre com a destruição de recursos naturais e a miséria das pessoas e cidades de seu país, encanta-se com a beleza das paisagens e com as manifestações de cultura popular. Apaixonado pelo Brasil, o jovem etnólogo, ao contrário do chefe da expedição, ama as viagens e a condição de explorador. As epígrafes, de sua autoria, falam exatamente desse amor pelo Brasil, da necessidade de conhecê-lo de perto e do prazer de viajar trabalhando, reservado ao etnógrafo. Uma observação do próprio Faria, a respeito de uma noite de boa música bem brasileira, poderia descrever a sensação de rever uma expedição realizada há 64 anos: "Faz lembrar um passado que a gente não viveu, mas que ficou também de herança...".


Beatriz Perrone-Moisés é professora de antropologia na USP.



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