São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2003 |
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O que significa isso?
Um texto de ficção do ensaísta e crítico literário Davi Arrigucci Jr. Enquanto voltava do interior, na direção de São Paulo, pensei, temeroso, que talvez fosse a última vez que vira meu pai com vida. Sob a névoa densa, a estrada congestionada, apesar do adiantado da hora, engarrafava os pensamentos, apertava o nó do peito, já opresso por dias seguidos de angústia. Nuvens pretas se acumulavam à direita, sobre a Serra do Japi. De longe, o clarão da cidade tornava o céu fantasmagórico. De vez em quando, a claridade aumentava; o farol da torre do Morro do Jaraguá perfurava o escuro com sua lança de luz. A noite anterior não havia sido fácil. Ele não tinha comido quase nada; a enfermeira não conseguia sequer virá-lo na posição certa; recusara-se com violência, brigando além da conta e dizendo palavrões, como nunca dissera antes. A respiração, entrecortada, se tornava cada vez mais custosa; a própria tosse, sem força, não dava conta do muco espesso, acumulado em meses seguidos de padecimento na cama; nas costas, nas pernas emagrecidas, formavam-se escaras. Jamais pude imaginar que o sofrimento se tornasse a rotina de dias e noites e nunca tinha sentido na carne a obrigação de percorrer esse caminho tão frequentado. As empregadas, durante o dia, tentavam de tudo para ajudar, mas o tudo ainda era pouco. Para além de suas ocupações normais, haviam se transformado em enfermeiras. Shirley, a mais velha, tinha mais de 20 anos no trabalho e tomava conta da casa como uma verdadeira governanta, inteiramente dedicada aos cuidados do casal de velhos, agora transtornados pela doença. Mas a rotina da doença tinha exigências próprias, e ela fazia a roda da casa andar no ritmo. Toda vez que chegava, eu perguntava a ela pela cor da urina. A hematúria vinha de muitos meses. Minha mãe, temendo o pior, habituara-se a dizer que estava até clarinha, que não sabia como, mas estava melhor; Shirley respondia, com precisão, que ainda tinha, que ele estava sempre lá. Todo esse tempo, havíamos convivido com o sangue, o novo agregado da família. E por mais que se fizesse, ele estava sempre lá. Minha irmã, nervosa, já não podia sequer olhar; não suportava vê-lo, mas constatava, a contragosto, sua presença inevitável a cada vez que o pai saía do banheiro. O estado dele se agravara demais nas últimas semanas; mesmo os pequenos intervalos entre as viagens amiudadas deixavam perceber o quanto o mal progredira irremediavelmente. A toda chegada, mais uma pequena derrota, e o renovado problema. Dessa vez, ele tardou um pouco em reconhecer-me, até que exclamou, de forma comovente, alçando-se um pouquinho com enorme esforço: "É o meu filho querido!". E voltou a recostar a nuca, deixou tombar de lado a cabeça toda branca, desgarrando-se de novo do que estava à sua volta. Fiquei paralisado diante dele, cravado ali de pé, as mãos estúpidas, sem saber o que fazer. O antigo consultório abrigava-o agora com o aconchego de um quarto de doente. Tinha o corpinho diminuído, as órbitas muito cavadas sob a testa alta, os traços do rosto demarcados pela longa enfermidade, a feição espiritualizada pela magreza, cansada da luta, os olhos azuis perdidos na claridade do ar seco e escaldante da manhã sanjoanense, de que ele gostava tanto. Próximo Texto: isso? Índice |
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